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18 de setembro de 2012
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08:10

Deus da carnificina

Por
Sul 21
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Por Otávio Augusto Winck Nunes

Muitos de nós tiveram a oportunidade de assistir este ano, em Porto Alegre, duas formas de tratar o texto chamado Le lieu du carnage, de Yasmina Reza dramaturga francesa. Tanto a montagem teatral, com elenco global, dirigida por Emílio de Mello, reapresentada aqui durante o POA EmCena, quanto o filme, dirigido por Roman Polanski, foram traduzidas por Deus da carnificina. A versão teatral e a cinematográfica, guardadas as particularidades de cada meio, são bastante próximas ao texto original, e assemelham-se em muitos aspectos.

O elemento disparador do texto é a ocorrência de uma briga dentro de um grupo de amigos, adolescentes, em que, um deles, ao ser chamado de “alcaguete”, responde com um golpe de bastão no rosto de seu colega, ferindo-o, quebrando dois dentes, deixando um com o nervo levemente exposto.

Poderia se tratar de uma simples briga de adolescentes, um desentendimento em que nenhum deles, visivelmente, teria ideia da extensão do seu ato, tanto de falar, a ofensa dirigida a um deles, quanto o de desferir um golpe que fere o corpo do outro.

Essa cena inicial, ocorrida, paradoxalmente, na Praça das Flores, serve de mote para o desdobramento da peça/filme, qual seja, um encontro entre os pais dos adolescentes, para decidir o que deve ser feito com seus filhos, afinal, eles seriam os responsáveis por dar a devida conseqüência ao episódio.

Assim, frente às faltas cometidas pelos jovens, lá estão os pais prontos a colocar ordem, onde ela faltou. Mais ainda, caberia aos pais responder com civilidade, onde ela mostrou-se ineficiente, ou mesmo, ausente. Obviamente, para dar consistência ao conflito existente, não é isso que ocorre. As discussões entre os quatro mostram exatamente que a civilidadeé uma fronteira muito flexível.

Esse recorte pareceu-me interessante, pois indica justamente, um dos problemas que os pais, por vezes, adultos, estão sempre as voltas: como transmitir, principalmente aos mais jovens, algum valor que não tenha um simples apelo moral. Isto é, que a moral do certo e do errado, mesmo que presente, não seja a único guia. Sabemos que as recomendações orientadas pelo aspecto moral têm um caráter eficiente, mas parcial, tornando a sua extensão limitada.

Penso ser importante ressaltar que o aspecto moral precisaria desdobrar-se em

outro elemento: o campo do civilizatório – que me parece, ser mais pertinente quando se trata do humano.

Por que propor essa distinção? Porque o aspecto moral é mais restrito quando atrelado a noção de culpa. Atrelados aos incansáveis “não” como sendo suficientes para darem uma noção de limite.

Nos mais diversos espaços, o debate existente em torno da colocação dos “limites”, é recorrente e inesgotável. Parece-me que a dificuldade ocorre, principalmente, quando estamos privilegiando o aspecto moral em relação a um aspecto mais civilizatório. Ou seja , há uma sobreposição da moralidade sobre a civilidade, produzindo uma redução quando assentada sobre a noção de crime e castigo.

Mas, então, como se conseguiria dar uma extensão maior que incidisse sobre o eixo civilizatório? Como dar uma volta maior que incluísse outra dimensão, não só culpabilizante, mas que implicasse a cada um de nós de maneira mais eficiente no ato? Ou seja, que incluísse a dimensão dos limites não só alheios, mas os próprios? Esse é um desafio que não cansamos de enfrentar, por certo.

Assim, mesmo que não se trate de estabelecermos uma única resposta, podemos pensar sobre.

Provavelmente nos enganamos quando acreditamos que a civilidade, marcada pelo convívio e a aceitação das diferenças, uma vez adquirida, permanece atuante a todo momento. Assim, a vida social, não sofreria mais os embates que as dificuldades de viver provoca. E além disso, uma vez inseridos na cultura, não retrocederíamos mais a um momento anterior ao que estamos vivendo e, com isso, conseguiríamos refrear o que há de mais desconhecido e estranho e, portanto, aparentemente distante de nós – a incivilidade.

Em Deus da carnificina assistimos na prática esse debate. Os dois casais com as melhores intenções, de proteger suas crias e a eles próprios, fazem de tudo para negar qualquer perspectiva civilizatória mais abrangente, reafirmando uma perspectiva moral que enfatiza o crime e o castigo. Com isso, tentam recobrir a perda que Freud alertava desde o início do século 20: o efeito civilizatório não está nunca totalmente recoberto. Há sempre um resto dessa perda (civilidade) que nos ocupa. E é com ele que lidamos quotidianamente, a sós, ou com os outros.

Otávio Augusto Winck Nunes é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); mestre em Psicologia do Desenvolvimento/UFRGS; mestre em Psicanálise e Psicopatologia, Universidade Paris 7.


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