Colunas>Coluna APPOA
|
14 de agosto de 2012
|
08:49

“Peguei a torta, agradeci a Deus pelo chão de linóleo e a joguei” — uma despedida

Por
Sul 21
[email protected]

Por Lucia Serrano Pereira *

Nora Ephron se foi. Grande roteirista e outras lidas mais — escritora, dramaturga, produtora e diretora de cinema. Agora em junho. Poucas semanas depois que terminei uma sequência de leitura de seus livros, justo quando o autor que lemos vai passando a fazer parte de nossas amizades interessantes… Lemos um, segue a vontade de seu estilo e histórias, deslizamos então para o segundo e um terceiro, e ainda o garimpo do que encontramos ao redor. E, claro, terminei revendo When Harry met Sally (1989). Será que o filme ainda fala conosco, sustenta algo do efeito que produziu, a explosão alegre das suas tiradas, de seu humor, da ironia e do trato irreverente com algumas verdades sobre homens e mulheres? Não, o cabelo da Meg Ryan termina com qualquer ilusão de contemporaneidade, é datadíssimo, incontornável. Billy Cristal não causa tanto estranhamento, a não ser o problema de vê-lo como parceiro amoroso da Meg, pois não cola. O amoroso vai melhor com o Tom Hanks em Mens@gem para você (1998), filme que foi dirigido por Nora, dos primeiro romances atravessados pelo computador. O título original é You’ve got mail, eles vão se “curtindo” e se apaixonando através do diálogo animado graças ao moderníssimo advento do e-mail. A mesma dupla foi dirigida por Nora em Sleepless in Seattle (1993). Houveram outros, vale conferir a filmografia. O mais recente, roteiro e direção, foi Julie e Julia ( 2009), o cordon bleu dialogando com a nova geração culinária, do despretensioso ovo pochê ao desafio supremo do pato recheado, temperado com os romances dos dois tempos que se alternam e conversam no filme.

É este o ambiente que adentramos, sim, o da comédia romântica. Harry and Sally ficou registrado na história do cinema como uma das melhores comédias românticas de todos os tempos, consagrada por crítica e público. Por onde ela pegou o público? Meu palpite vai para o touchdown de Nora, quando encena o avesso das falas de conveniência, do senso comum do encontro entre um homem e uma mulher, e parte para a confissão daquele pensamento ou fantasia, ou temor que, bah! fura o semblante e mostra uma nesguinha do crú ( o crú e o cozido, já dizia o antropólogo quanto ao civilizatório). Ela escreve nessa linha, entre o dito civilizado relacional e o que se vê de frente, praticamente sem véu, no encontro e desencontro entre os sexos. Ou isso também quando fala da sua experiência de vida, é só dizer o título de um de seus livros: Meu pescoço é um horror (ed. Rocco, 2007). Tá certo, nesse caso a tradução do I feel bad about my neck é até mais histriônica do que o original, mas é boa, transporte da tradução que tem tudo a ver com o clima do livro. Ali, passados os 64 de idade, ela luta com humor frente a tudo o que cai, narra as peripécias do que chama a “manutenção” do corpo e da cabeça nesse processo. Ao final, no meio dos agradecimentos de praxe, no livro, escreve: “gostaria de agradecer a todas as pessoas que se empenharam a fundo para deter a força da gravidade sobre mim. Graças a isso estou parecendo um ano mais jovem do que sou.” A ironia é de uma graça impagável – todos os esforços da luta anti-aging faz o resultado de … um ano! E não dez, como qualquer boa revista do ramo promete. A narrativa de Nora é assim, engraçada, ácida, e com certa compaixão pelo encontro com os limites de toda ordem. O rosto é a mentira e os pescoços são a verdade, delatores infalíveis, afirma. E brinca denunciando as falas de convenção que costumam recobrir algumas verdades difíceis. O fato é que no mais das vezes não se sabe de coisas simples, banais, nas relações, e nisso se transita no mundo dos semblantes. Pelo fato de que não temos essências, lidamos sempre com furos e desconhecimentos. Exemplo? É só pensarmos que a cada vez que falamos há um ponto de onde parte nossa fala que desconhecemos, não dominamos. Soma-se a isso o enigmático do parceiro, o desconhecido do sexual, de nosso lugar nas fantasias, e por aí vai. Mas o que se organiza com e a partir desse “não saber” vai sim, fazer toda a diferença. Com mais ou menos defesa, humor ( o que deixa o caminho mais leve e compartilhável) lamentos ou festejos, possibilidades, obstáculos e encaixes.

A questão é a de movimentar as aproximações com o outro do amor ou do sexo podendo fazer algo a partir disso que falta – não é dessa matéria o desejo? Achar um saber-fazer. Levar em conta certo repertório, tanto os singulares, os que estão à disposição de cada um via as constelações de sua trajetória, num mix com a pergunta sobre como se virar com os jogos de posições que foram disponibilizados e indicados para os homens e as mulheres nos inúmeros cruzamentos em nossas cultura.

Nora Ephron, ainda falando sobre Harry and Sally, propõe reconhecer nas comédia românticas duas tradições, uma cristã e uma judia: a tradição cristã apresentando um obstáculo verdadeiro que mantém os amantes separados; a tradição judia, indicando como pioneiro Woody Allen, o obstáculo básico nas tramas não raro estando ligado à neurose do personagem masculino. Obstáculos internos, e é isso que ela explora, com o jogo que mistura verdade/semblante que faz os personagens de seus roteiros mostrarem tão bem. “Quanto tempo um homem precisa ficar abraçado na mulher depois de fazerem amor? Trinta segundos é suficiente?” Harry pergunta para Sally. E ela faz para ele, na lanchonete, a já clássica simulação de um orgasmo, entre o início e o final do sanduíche (pois ele dizia nunca ter se enganado quanto ao gozo de uma mulher). A pérola da cena: Rob Reiner, o diretor, coloca sua mãe fazendo uma ponta no filme – sentada na mesa ao lado do casal, na lanchonete – e quando Sally dá o último suspiro do gozo simulado, ele faz a mãe, vejam só, formular ao garçom o pedido, a velha piada americana: “por favor, você pode me trazer o mesmo que serviu a ela?”

Em Não me lembro de nada Nora escreve aos setenta anos, e a narrativa apresenta na entrelinha a luta com algo que não se dá a revelar explicitamente no texto, mas que tem a ver com ausências de memória, com perdas. Conta do momento em que não reconheceu a irmã, no shopping, e de alguns outros estranhamentos desta ordem. Mesmo assim, sempre o humor, avisa o leitor “esqueci… Só um pouquinho que vou ali no Google. Pronto, aqui está”, e segue. Paradoxalmente, é nesse livro que conta ao leitor muito da sua história pessoal e profissional, do início de sua vida de jornalista, das passagens pelas Revistas Esquire, New York, pelo Post, até chegar à prestigiada New Yorker.

O último de seus livros que lí foi o mais antigo, Heartburn, traduzido por O amor é fogo (roteirizado e filmado, o par é Jack Nicholson e Meryl Streep). Nora conta da separação na vida da personagem. O marido a deixa por outra mulher, ela grávida de sete meses e ainda um filho pequeno. Fato mesmo, em sua vida, quando deixada pelo marido (um dos jornalistas do Washington Post que fez a denúncia no escândalo de Watergate). E ela não se furta de confirmar que, a ficção de Heartburn é sim sua vingança, jogada aos quatro ventos, para desgosto real do ex. A personagem diz “Se eu tivesse que fazer tudo de novo teria feito um tipo diferente de torta. A torta que eu joguei em Mark fez uma sujeira tremenda, mas uma torta de mirtilo teria sido ainda melhor porque teria arruinado para sempre o blazer novo dele, o blazer que ele comprou com Thelma. Peguei a torta, agradeci a Deus pelo chão de linóleo e a joguei.”

Nora Ephron. Fica o talento, a sensibilidade no contar de Harrys e Sallys, seus e dos outros, compondo o legado.

* Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora