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7 de agosto de 2012
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08:29

Desde que o samba é samba foi assim

Por
Sul 21
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Por Robson de Freitas Pereira *

“O romance evidencia a necessidade da arte como um elemento catalisador” escreveu João Baptista na orelha do novo livro de Paulo Lins. Já se transformou lugar comum afirmar que o samba,música e dança, de marginal virou traço de identidade brasileira, fazendo a síntese mais bem acabada de nossa formação cultural. Pois, onde mais poderíamos buscar tanto a afirmação da mestiçagem, do sincretismo religioso, sexual, racial e social quanto sua oposição? Afirmação de uma tradição e invenção do novo simultaneamente através de seus personagens, representantes de cada uma das correntes, ou dos fios que fizeram a trama singular e complexa do samba e, de suas escolas.

Depois de revelar o estabelecimento, crescimento e destino da Cidade de Deus através das diversas atividades e trajetórias de seus habitantes, o escritor resolveu nos contar como foram criadas as escolas de samba. Fundindo personagens históricos e ficcionais para narrar a ópera do surgimento e da afirmação de um patrimônio cultural: o samba e suas instituições. Dentro da complexidade e riqueza do tema vamos destacar um aspecto: o valor simbólico e organizador de uma comunidade que a criação das escolas teve. Cartola – Angenor de Oliveira – um dos fundadores da Estação Primeira, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som sintetizou: “A importância da Estação Primeira foi a de promover a união dos diversos blocos do morro. Passou a ser de todos. Antes, cada bloco tinha o seu dono.” Uma escola de samba não tinha dono. Era fruto da solidariedade e contribuição de todos.

Lins, o autor, faz de sua pesquisa histórica um registro ficcional e vice-versa. Embaralha as cartas para mostrar o nascimento do “samba de sambar do Estácio” como o conhecemos hoje. Sob a justificativa do carnaval – tempo de liberdade autorizado pela repressão oficial que não tinha como conter a música nova que mesclava sensualidade, ritmo e dança. Contraponto ao “entrudo” dos colonizadores portugueses, ou aos ranchos comportados, o samba era expressão dos que haviam ficado à margem da modernização urbana do Rio de Janeiro no início do século XX, transformado pelo prefeito Pereira “bota abaixo” Passos. Disposto a criar uma metrópole nos trópicos, com boulevares e avenidas monumentais dignas das melhores utopias europeias, Passos empurrou os negros, os imigrantes pobres para as chácaras dos subúrbios e os morros que circundavam o centro da cidade. Onde já estavam alojados os voluntários da pátria da guerra do Paraguai.

Alí, nas proximidades da Praça Mauá, do Catete e da Lapa, na zona do meretrício do Mangue, nos terreiros do morro de São Carlos, na Praça Onze e no já citado Estácio os marginais e compositores, pais de santo, funcionários públicos e biscateiros viam nascer um novo mundo e inventavam maneiras de lidar com esta dialética da exclusão/inclusão. Uma delas, a forma nova de cantar e dançar, um novo ritmo sincopado que se confrontava com as antigas molduras musicais: um samba. E, explorando sua potencialidade criam uma instituição: a escola de samba. A organização necessária para que aquele povo pudesse desfilar sua arte, alegria e musicalidade suplantando a desdita, a inveja e truculência policial. Ao som da percussão e das cordas, do enredo cantado por todos e marcado no pé, o grupo saía do “Buraco Quente” e vinha juntando o povo pela avenida.

Tudo isto contado através das personagens que nasceram e se criaram naqueles lugares e depois foram ocupando a zona norte que ficou mais próxima com os trilhos do trem: Mangueira, a primeira, depois Meier, Cascadura, Madureira, Osvaldo Cruz, Quintino, Engenho de Dentro e por aí vai.

Entre os vários protagonistas do livro estão Brancura e Sodré. Além deles, Valdirene que amou os dois e teve gêmeos bi-vitelinos Marquinhos e Marcelo, um branco e um preto- como os pais. Seu Tranca Rua da Calunga Grande, Dona Maria Padilha, Zé Pelintra e outras entidades do candomblé e da umbanda – outro fruto da fusão do catolicismo, kardecismo e rituais africanos. Tia Ciata avalista moral e material em cujo terreiro, depois das sessões, os sambistas podiam mostrar as novas composições e fazer suas festas em segurança.

Neste livro-enredo, Paulo traz um recurso estilístico de revelar e esconder na utilização dos nomes. Por exemplo: Silva, Alfredo e Alves. Três compositores apresentados assim com um nome singelo, mas que significa muito para quem os identifica. Ismael Silva (um dos grandes homenageados da trama) autor de muitas composições, entre elas “Antonico” e “Se você jurar”, uma das poucas letras transcritas integralmente no corpo da obra. Alfredo da Rocha Vianna, Pixinguinha e Francisco Alves, “Chico Alves” o rei da voz, que além de comprar samba dos bambas do Estácio fez novos parceiros (Silva entre eles) e trouxe os cantores da época e amigos de São Paulo para conhecer as novidades que os cariocas estavam fazendo. Mario de Andrade ficou tão encantado que colocou Tia Ciata como personagem de sua rapsódia “Macunaíma”. Transformada numa Pomba-Gira poderosa ela ajuda nosso herói a castigar o gigante Pietro Pietra.

Do mesmo jeito que os sambistas são identificados com respeito, leveza e de forma delicada. Os dramas existenciais e as tragédias também. Não há julgamento moral dos personagens. As prostitutas, os cafetões, os malandros tem suas razões e apresentam suas armas segundo as circunstancias da vida. A sexualidade e o desejo, homo ou hetero, o casamento, o ciúme, a generosidade, honra e a traição fazem parte do cotidiano a ser enfrentado. Resta saber o que fazer com ele, ter um “savoir faire” que se diferencia da acomodação ou da covardia quando se faz as escolhas. No campo da música, há uma única exigência: quem achar que tem talento, precisa coragem para desenvolver sua arte, submetê-la aos pares e ao juízo público. Maneira de provar que o artista consegue articular o “eterno e o moderno” (como dizia Baudelaire) para ser contemporâneo e estar a altura de seu tempo. Para isto, nada de rima pobre, há que extrair da língua rimas ricas e preciosas com a experiência que se tem, com os meios que encontrar para ser solidário com sua cultura. Desde que o samba é samba (Paulo Lins, Planeta, 2012), é assim.

* Psicanalista; Membro da APPOA. Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007). E-mail: [email protected]


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