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21 de agosto de 2012
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08:04

Brincando e tomando chá com Cat Stevens

Por
Sul 21
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Por Ângela Langaro Becker

Tive a oportunidade de assistir neste domingo um espetáculo chamado “ Chá com Cat Stevens” com Peter Lavratti, ex-bailarino do Grupo Corpo (MG). Trabalho extremamente original, como costumam ser certas performances. A criação de Peter foi uma tentativa de reproduzir o momento de seu primeiro contato com o disco de vinil de Cat Stevens “Tea for the Tillerman”. Primeiro contato, bem no equívoco da palavra, pois trata-se do sentido de “tocar” em todas suas possibilidades. Como descreve o artista, conheceu este disco quando foi tocado numa vitrola antiga, na sala de um sitio no interior de Minas. Quando ouviu, seu corpo “dialogou” com Cat Stevens. A partir daí, Peter Lavratti transformou esta experiência em arte performática e quem o pode assistir, participou deste dialogo e tomou chá com Cat Stevens.

Não pude, certamente, ficar passiva diante do convite proposto pelo espetáculo. As musicas deste disco foram tão marcantes para quem teve sua adolescência nos anos 70 que mesmo que atualmente a adultez nos leve a outros dialogos, nosso corpo não conseguiria calar-se diante deste que Peter nos convida. As musicas de Cat Stevens não são o que poderíamos chamar de “dançáveis”, apesar do ritmo marcante e das letras que falam dos ideais de liberdade. No entanto, não há como escutar Cat Stevens sem que o corpo se mova. A intensidade das notas que compõe suas musicas/letras nos atravessam. Peter relata que sentiu isso, mesmo que sua adolescência tenha acontecido bem mais tarde. E, para nossa sorte, transformou este diálogo numa montagem cênica ao estilo de uma performance.

Eternizar momentos importantes de nossa historia é o que se objetiva quando se escreve sobre eles ou mesmo quando se os fotografa, mas quando esta tentativa de guardar as recordações toma a forma de uma performance, não há eternização possível. Então, o que está em jogo neste tipo de criação que não pode ser retida?

Num dialogo com o bailarino, ele me fala um pouco da sua técnica. O elemento mais marcante é a improvisação. Esta é descrita por ele não como uma invenção livre do bailarino, embora possa parecer. O tempo real e o ficional estão presentes e misturados. No improviso existem momentos que se poderia chamar de “coreografia ensaiada”, combinações de gestos e composições organizadas que são abertas a modificações em tempo real. Não se trata de uma invenção plena no momento da apresentação, mas sim de um alto grau de imprevisibilidade. O conceito de improviso utilizado por Peter baseia-se no movimento pós-moderno ocorrido em Nova York, através de Steve Paxton( aluno de Merce Cunninghan), Lisa Nelson e Danny Lepkoff.

Lembremos que a partir de 1950-1960 a dança começa a acompanhar o movimento pós-modernista. Os movimentos do corpo no espaço deveriam estar ligados a algo que vinha de fora e que passava através do corpo, sendo que o bailarino era simplesmente um suporte anônimo. O principal representante deste estilo de dança foi Merce Cunningham, que teve orientação do compositor John Cage. O vazio de sentido e a interação entre várias artes eram princípios deste novo movimento.

No caso da performance desenvolvida por Peter Lavratti, o jogo de luzes foi o ponto de partida para depois o corpo ocupar os espaços luminosos. Quanto à composição do diálogo com a musica, não há sentidos pré-determinados, tanto que o autor, num determinado momento, convida quem queira participar desta « conversa » apostando que cada um ali se movimente de acordo com as associações que a musica e o contexto lhes surgem em tempo real.

Já nos dizia Lacan que nosso corpo não é unidade permanente onde se ancoram nossos “eus”. Ele só ganha algo de consistência, fazendo memória de forma fragmentada, através do reflexo do Outro. A efemeridade desta imagem é o que está em jogo no processo da performance. Não há ali uma significação que possa ser lida de forma coletiva, pois o corpo dialoga com a musica, com as luzes e o espaço numa forma de associação livre, mesmo que alguns gestos/chave possam estar ensaiados para dar estrutura ao que o autor deseja contar. Assim, de performance em performance, numa demonstração de que todos nós só ganhamos algo de consistência se pudermos ser “lidos” pelo outro, a platéia torna-se esse grande leitor. Essa narrativa é como uma escrita que se dá através do corpo, no espaço onde a musica fabrica contexto e cenário.

Na performance, o lugar do Outro é fundamental. Esse Outro podemos traduzir como plateia, mas também se trata deste pedaço do próprio autor que está lá no olho de quem olha e no ouvido de quem escuta. O Outro é, portanto, coautor do espetáculo, na medida em que está misturado na cena. A improvisação, o local indefinido, o texto espontâneo, convocam ao aqui e agora, expõem o vazio de sentido e mantêm o lugar do enigma. A performance é considerada uma arte de fronteira, porque desafia os limites que separam as diferentes expressões artísticas – teatro, dança, música e artes visuais – e ainda, rompe com a fronteira entre a vida e a arte, de modo a diluir a separação entre ator e personagem, ator e público, arte e cotidiano. Isto tudo provoca na plateia a sensação de ter vivenciado algo íntimo e único com a obra apresentada. Esta é sua beleza. Beleza ao ouvir, beleza ao olhar, e ao degustar o sabor do chá… a obra de Peter Lavratti atravessa nossos buracos e nos envolve de tal maneira que nos move até dentro dela, participando também no toque: tocar e fazer explodir as bolhas do plástico/bolha que o artista estende no chão, o gozo do brincar. “Where do the children play?” O pueril está presente não só nas letras de Cat Stevens, mas no estilo deste ex-bailarino do Grupo Corpo, que faz do BRINCAR um estilo coreográfico próprio.

Angela L. Becker é psicanalista membro da APPOA, mestre em “Adolescência e Instituições” pela UFRGS e doutora em“ Dança e Psicanálise” pela Université Paris XIII.

Peter Lavratti participou do Projeto “ Residências Artisticas ” do Programa Meme Quatro Estações de Cultura, patrocinado pelo Ministério da Cultura e FUNARTE. Nesta ocasião ele ofereceu um workshop com o tema “ A improvisação como uma forma de composição em dança”.


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