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10 de julho de 2012
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08:01

Quando os fantasmas não saem de cena

Por
Sul 21
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Por Lucia Serrano Pereira *

Foi no respiro de leituras e trabalhos de prazo foi que comecei a ler Nêmesis, de Philip Roth. O que queria mesmo dizer esse título? Algo remoto (talvez bíblico?) não fui verificar, deixando flutuar por um tempo. E depois que a narrativa engrenou, foi dessas que não deixam pensar em outra coisa.

Década de 40, em plena Guerra Mundial, a cena se passa na Newark, industrial, no bairro de imigrantes judeus, vida difícil, momento de extrema tensão. Bucky Cantor é o jovem instrutor que orienta uma quadra de esportes para adolescentes, em um desses momentos da História em que o real se apresenta duro: a ficção de Roth se apoia em memórias do verão de 44, onde se espalha a epidemia de poliomielite nos EUA, atingindo e mesmo matando milhares.

O impressionante na narrativa é o trânsito entre os termos sobre os quais não se tem controle algum, e as consequências disso sobre as vidas e as relações. O autor se vale do que ficou marcado em sua infância como os maiores fantasmas, os piores perigos: a guerra, a bomba atômica e a pólio. Para uma criança que sondava a apreensão dos adultos, três termos quase que em pé de igualdade. E isso compõe a verdade da narrativa, o perigo ou os perigos que compõem em um tempo determinado os índices de que estamos, humanos, ao sabor de eventos que não nos deixam esquecer nossa finitude, fragilidade, a impossibilidade de tudo controlar. Mas que junto a isso vai fazer diferença algo na condição de como tomar posição frente a esse real, caminhos diferentes, a partir do que está orientando a bússola para cada um.

De onde apareceu a pólio no pátio daquele verão insuportavelmente quente, na quadra de Weequahic?

Ninguém sabia como se dava o contágio, podia ser pelo excesso de calor, ou pela comida sem higiene – o cachorro quente da esquina, ou dos gatos que circulavam no lixo, pelas pombas e seus rastros brancos. No bairro houve um início que ficou valendo como origem, na tarde em que os garotos italianos foram à quadra para provocar. Eles dizem ter ido espalhar a pólio, já que se falava que tinha vindo justo deles, do bairro italiano. E cuspiram no chão fazendo a performance da entrega da doença. Bucky foi corajoso e ponderado, assumiu logo atitude frente aos seus adolescentes, tratando de lidar e acalmar os italianos, os despachar para casa sem briga, lavando com água e amônia o cuspe da ameaça. Mas depois disso, no dia seguinte, dois dos seus jovens caem doentes. Alan, um dos meninos, é o primeiro a morrer, em apenas dois dias.

Alan, que contraste! Justo ele, o melhor, super saudável, esportista, amigo, como assim, a pólio o tomou? Bucky não recua frente ao horror, e acompanhamos a forma comovente com a qual acompanha a família do primeiro menino perdido, a dor, o sentimento de sem sentido, o que se pode fazer com isso. Vai acontecendo de novo e de novo; a verdade é que, perplexos, não sabem absolutamente o que fazer.

Em paralelo, acompanhamos o que foi a dureza da experiência de vida de Bucky Cantor, a morte da mãe quando lhe deu a luz, o pai que roubou no trabalho desde sempre e foi embora; e o que lhe deu algum conforto, família, princípios na vida, a criação junto dos avós. Assim, apesar de tudo, ele consegue crescer e ter um norte na vida. E agora, um trabalho, um horizonte, e uma namorada que ele ama. Mas tem esse senão aqui ou ali, como a vergonha de não ter podido ir para a guerra, como seus amigos, em função de uma acentuada miopia. Assume seu posto – na quadra – mas um pouco deslocado de onde pensa que deveria estar – na guerra. Mas está no front da pólio, cuida de sua gurizada, meninas e meninos, garantindo que a vida possa seguir com certa coragem, se trata também de defendê-los. Tudo segue até que a namorada liga, está trabalhando como instrutora em uma colonia de férias na montanha, onde a epidemia não alcança, e pede, implora que ele vá para lá – ficar é perigoso, vagou um lugar de instrutor, e o diretor concordou em chamá-lo, a pedido de Márcia. Bucky diz não, claro, como é que vai abandonar seu posto? Caem mais alguns dos seus meninos, os pais ficando totalmente aprensivos de ter os filhos circulando na quadra, quem vai ajudar?

Bucky caminha pela cidade e vai justo até a casa da família de Márcia, onde encontra o pai da moça, médico da cidade, que recebe nosso instrutor, o acolhe, conversa, escuta. Concorda com ele sobre a doença, é preciso calma, a vida precisa seguir, não partilha do pânico. E Bucky sai, confortado por aquele pai, com as impressões daquela casa tranquila onde não houve essa economia de gerações com a qual teve que lidar na contingência da sua história (sem pais, direto com os avós). E em um impulso, não deixamos de considerar aqui seu drama, se precipita em direção a essa família, pede a mão de Márcia em casamento, resolve ir para a colônia de férias ao seu encontro, as promessas amorosas e sexuais presentes todo o tempo, se desembaraça rápido do trabalho e vai, chega lá, que alívio a narrativa apresenta! Só então o festejo de tudo, o ar livre, o sol, o riso das crianças, o lago, o corpo bronzeado da namorada, o sexo, o café da manhã, tudo quer dizer uma coisa só: livre da pólio. O fantasma faz a aparição com todo seu peso, agora, na distância, no contraste. Mas também outras consequências: no meio da imagem sublime do novo aluno que mergulha na perfeição, flashes da imagem de Alan… O que está a salvo faz um diálogo difícil e inusitado com o que se perdeu. e ele se dá conta: fugiu. Não está “a salvo”, como logo a narrativa vai mostrar, de várias maneiras surpreendentes.

E o livro nos apresenta a sabedoria tão simples e crucial: o valioso de não descuidar da forma de achar posição, as maneiras de lidar com as escolhas, e os efeitos totalmente definidores que podem depender disso em uma vida. É o que Philip Roth aponta em sua ficção, com alguns dos traços da composição que estiveram presentes em sua história e em suas cenas/fantasmas, dando voz a um narrador que só se revela com a novela já bem andada. Quem conta a história é a voz atual de um dos que foi menino com pólio da quadra de Bucky. Mas que se revela ao leitor de repente, quase como aparição.

Na mitologia grega Nêmesis nomeia a deusa da vingança divina. Roth diz ter pensado seus últimos romances (Homem comum, Indignação, A humilhação, e mais Nêmesis) como um conjunto de romances curtos, todos com histórias que mostram um protagonista sob uma situação de ameaça – morte, guerra, declínio do corpo, epidemia – onde não há nenhum controle sobre seu próprio destino. Talvez isso mesmo seja o que faça a pegada firme do livro: literatura que fala da vida ali não está previsto o ancoradouro, onde depende mesmo do que se pode escolher. Às vezes mal, ou tragicamente, ou sabe-se lá, outra coisa mesmo na diversidade… De qualquer modo caminhos na ficção que se mesclam no pensar sobre a tarefa do inventar, construir experiência na vida, para que possa valer a pena.

* Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referências: Nêmesis – Philip Roth, Cia das Letras, 2011.


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