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24 de julho de 2012
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08:43

On the Road – Na estrada

Por
Sul 21
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Por Robson de Freitas Pereira *

Cinema é cinema, literatura é literatura. Mas como lidar com isto quando se trata do roteiro a partir de uma obra que marcou gerações, transcendeu o âmbito diretamente literário? A questão é campo de controvérsias e reacende a cada novo filme lançado que mereça ser discutido. Esta é uma das interrogações que antecederam o lançamento de “On the Road” – Na estrada, dirigido por Walter Salles, roteiro adaptado do mitológico livro de Jack Kerouac.

Se a tríade sexo, drogas e rockn’roll marcou época, ela não deixa de ser um eco da geração que viveu o sexo , as drogas e o jazz do pós-guerra. E esta transição, esta viagem com todos os seus elementos fundamentais para a cultura ocidental ficou plasmada no livro de Kerouac e seus efeitos profundos. Somente agora teve um filme que enfrenta o desafio. Porque para fazer o retrato de uma época em termos cinematográficos o cineasta tem que ser como o tradutor de outra língua – tradutore, traditore – tem que ser fiel à linguagem cinematográfica e não exatamente a obra literária. E como fazer isto, quando o texto e suas interpretações já tem várias gerações de leitores, comentadores e até mesmo intérpretes que nunca o leram, mas que nem por isto deixam de ter opinião formada sobre a geração beat e os filmes de estrada. E, curiosamente, ou talvez por isto mesmo, o clássico norte-americano pode ser realizado com um diretor brasileiro, produção francesa e americana (Coppola) e músico argentino (Gustavo Santaolalla) na condução da trilha.

Ricardo Piglia dizia que as histórias narradas poderiam ser reduzidas (grosso modo) a Ulisses ou Édipo, a viagem ou a investigação. A viagem seria uma trajetória para a descoberta de si mesmo, como Sal Paradise, o narrador, pode ser um Xavier de Maistre revisitado. No filme de Walter Salles, Sal é simultaneamente Ulisses e Édipo. Isto nos é mostrado em diversos momentos, onde as referencias literárias dos personagens, focalizadas pela câmera, oscilam entre Ulisses, de James Joyce e No Caminho de Swann (primeiro volume de Em busca do tempo Perdido), de Marcel Proust.

O narrador inicia sua viagem após a morte do pai e, só consegue escrever o livro (não suas anotações, porque estas faz todo o tempo) quando interrompe a travessia da América e, faz a separação de Dean Moriarty. Não pode mais segui-lo. Aqui, o estilo do diretor. Se lembrarmos de <Linha de Passe, Central do Brasil ou Terra Estrangeira vamos encontrar a caminhada/viagem e esta busca das referencias paternas como eixos fundamentais. Neste filme isto é evidente. Sal enterrou o pai. Dean não consegue encontrá-lo, nem em sua busca mais explícita. Ambos procuram também outras referências, outros suportes simbólicos, imaginários e reais na amizade, no exercício da sexualidade, hetero, homo, casal, comunitária, grupal numa subversão da ordem dogmática e conservadora vigente. A música e as drogas também são acompanhantes privilegiados , parceiros para suportar a angústia aguda e crucial daqueles tempos. Tudo apresentado sem preconceito e com carinho pelos personagens. Nem poderia ser de outro jeito.

Aqui comparece uma característica do efeito sobre o espectador atual: a tensão angustiante. Não é um reality show, não se trata de mais um big brother onde ficamos espiando a vida dos outros no conforto da sala de televisão. Somos impactados pelo desconforto e, com a angústia que os personagens carregam todo o tempo. Tensionados por seu destino e suas escolhas. Alguns momentos magistrais, onde podemos nos reconectar com o que foi a necessidade do bebop, com sua dissonância, seu ritmo frenético, tempo acelerado e improvisação para que aqueles corpos jovens e cheios de fúria vital pudessem encontrar expressão. A cena dançante ao som de Salt’n peanuts é antológica (Axé! Bird e Dizzie). Ou mesmo a droga (o cigarro ainda não era droga malquista). A benzedrina era droga barata de quem não podia sustentar as doses injetáveis de heroína ou coca. Tudo isto, acompanhado pela música às vezes frenética, às vezes opressiva, ou ruídos como só grandes jazzista sabem fazer. Gustavo Santaolalla, parceiro de outros filmes ( Linha de Passe, Diários de Motocicleta) juntou-se (no melhor sentido ) com Brian Blade – bateria e percussão e Charlie Haden – baixo , para recriar acusticamente a atmosfera do final dos anos 40 e início , prenuncio dos anos 60. Biscoito fino para ouvidos atentos.

Algumas pessoas não aguentaram. Saíram do cinema antes do final. Coloco a retirada na conta do tempo extendido para denunciar de onde queriam sair os personagens. Na cor exuberante, nos filtros, na luz quente, no enquadramento em primeiro plano que faz o espaço diminuir nos ambientes fechados, nos cortes precisos, o diretor mostra o domínio de sua arte. Efetivamente, não era um BBB 10. Não tinha tarefas competitivas para ganhar gadgets de consumo fácil. A tarefa era uma busca desesperada de um sentido para a vida e nisto, cada um se vira como pode, com seus mais belos sonhos e seus piores pesadelos.

Quando pensamos que a travessia da América está terminando, somos surpreendidos com a viagem ao México, onde finalizam os quatro pontos cardeais da busca – do leste ao oeste profundo, do norte ao sul além da fronteira. É lá que vai se gestar a separação. Dean não suporta estar junto de quem precisa de ajuda. Só consegue viver a fruição da pulsão vital enquanto todos tem energia para gastar. Quando Sal adoece, é deixado à própria sorte. Não é um voto de morte. É só uma impossibilidade de ser solidário. Curiosa constatação: diferentemente do senso comum psicanalítico, talvez não se trate de uma pulsão de morte; trata-se de uma pulsão vital descontrolada e destrutiva que pode arrastar o sujeito e aqueles que estão junto com ele. Esta capacidade de queimar que mais tarde será conhecida com o mote: “live fast, die young”.

Mencionamos no início as aproximações e diferenças entre o escrito literário e o que se realiza na tela iluminada pela imagem em movimento. Neste filme, transparece a paixão por escrever. Escrever a vida à flor da pele, com o coração na ponta dos dedos. Na estrada conseguiu uma maneira de mostrar cinematograficamente a pulsão pela escrita e a persistência do desejo de testemunhar uma época inventando e, simultaneamente, apropriando-se das formas narrativas modernas. Contribuição do cinema.

Ao contrário de algumas opiniões, o filme não é melancólico. Como disse anteriormente, angustiante sim. Talvez porque aponte também impasses atuais, p. ex. entre o cotidiano e a aventura, onde nos senderos da vida “al andar se hace el camino/ y al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar” (1). Ou , como cantou outro bardo “how many roads must a man walk down/ before you can call him a man?” (2).

(1) Antonio Machado, “Caminante no hay camino”.

(2)  Bob Dylan, “Blowi’n in the Wind”.

* Psicanalista; Membro da APPOA. Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).
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