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12 de junho de 2012
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08:31

Uma pulga atrás da orelha

Por
Sul 21
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Por Otávio Augusto Winck Nunes

Ao assistir ao filme Albert Nobbs (2011), dirigido por Rodrigo Garcia, não pude deixar de lembrar numa questão aparentemente banal e, talvez, por isso mesmo fundamental da condição humana: será o corpo humano suficiente para conter tudo o que é relativo ao sexo?

O filme é uma co-produção inglesa/irlandesa, e foi baseado em um conto do romancista irlandês George Moore. Albert Nobbs é um circunspecto e contido camareiro de um hotel em Dublin, em uma Irlanda conservadora, como praticamente toda a sociedade mundial do século XIX. O segredo que Albert tenta guardar a sete chaves é que por baixo do seu uniforme passado, engomado e de sapato lustroso está o corpo de uma mulher.

Parênteses necessário. No filme, Albert é interpretado com muita competência por Glenn Close, papel que já havia representado no teatro. Da marquesa libertina de Ligações Perigosas, passando pela amante insaciável de Atração Fatal, para chegar a esse sisudo camareiro pode-se dizer que o exercício dramático exigido a atriz não foi de pouca monta. Talvez, menos recompensado que deveria.

Albert, então, filha de mãe prostituta, foi criada em um convento. Por volta dos seus quinze anos, a mãe morre, ela é expulsa do convento, e em seguida é violentada por um grupo de homens. Ou seja, uma vida em nada cor-de-rosa. A partir desses episódios, resolve então travestir-se de Albert para sobreviver e viver. O aditivo é proposital. Pois, mais que travestir-se de homem para enfrentar uma sociedade brutal e conseguir emprego, Albert desenvolve, sim, um interesse amoroso e sexual por mulheres. Não para sobreviver, mas para viver.

E aí, reside o interesse do filme, portanto na questão sempre atual e problemática, independetemente do conservadorismo da sociedade, do que é que faz um homem, homem, ou o que faz uma mulher, mulher. E até, é possível ser homem num corpo de mulher, ou mulher num corpo de homem?

Definitivamente, nesse aspecto, o terreno é por demais desconfortável – como uma pulga que pula em nosso corpo.

Desde o período retratado no filme, a bem da verdade, desde muito antes, até os dias de hoje o sexual está sempre em evidência. Seja pela contínua e desgastante guerra dos sexos, seja pela dificuldade em recobrirmos o que é relativo ao sexual. Simone de Beauvoir diria com sabedoria que “ninguém nasce mulher, mas, torna-se mulher”. Para o homem, sem dúvida alguma, vale o mesmo. O sexo genital garante pouca coisa tanto para elas, quanto para eles. E nesse sentido, Freud, com a psicanálise, foi fundamental para ajudar Beauvoir chegar a essa afirmação,

Freud apontava a importância que há em nos defrontarmos com o inefável da diferença anatômica sexual, mas, ressaltava, que as consequências psíquicas daí decorrente é que nos dão trabalho. É com os efeitos psíquicos provocados pela diferença dos sexos que, como humanos, somos concernidos. Ou melhor, o enigma do sexual não está situado no corpo.

E quando se trata de amor e de sexo entre iguais, o território ganha contornos menos nítidos. Ainda menos, quando o sexo do corpo não corresponde ao chamado sexo na cabeça. Ou seja, quando a coincidência sempre instável entre o corpo biológico e o corpo psíquico, por assim dizer, não ocorrem.

É curioso que ao sexual sempre se atribui um tom animalesco, primitivo, sem controle. Basta nos reportarmos as formas nem sempre carinhosas de nos referirmos a essa questão: o peru, o pinto; a galinha, o veado (ou viado, se preferir), a sapa, a cadela no cio, o cornudo, entre outros mais e menos cotados. E nesse aspecto, tanto faz a posição sexuada de cada um. O apelo ao animalesco vem, quase sempre, associado a uma desqualificação.

E nesse aspecto, interessa sim, imprimir um tom, por assim dizer, selvagem, ao que escapa ao humano. O que poderíamos dizer que em psicanálise se chama do impossível, de algo que não encontra uma palavra que seja suficiente para defini-lo, ou circunscrevê-lo. Ou seja, sempre tem algo que excede, um elemento a mais que escapa a possibilidade de civilizadamente representar..

Não seria esssa a dificuldade dos tantos Albert Nobbs (independente do seu sexo, da sua preferência, de sua prática) existentes por aí? Como encontrar reconhecimento no âmbito, digamos assim, que mais concerne aos humanos e que menos respostas temos em como resolver os enigmas do sexo? Essa é uma pulga que sempre nos espreita.

No filme, a revelação do grande segredo de Albert se dá nessa mesma medida. Seu corpo de mulher, é denunciado por uma minúscula pulga. A “selvagem” pulga precipita o aparecimento de uma mulher. Pena que, naquela situação, para ele/ela um tanto cedo demais.

Otávio Augusto Winck Nunes, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, mestre em Psicanálise e Psicopatologia, Universidade Paris 7.


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