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19 de junho de 2012
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08:59

Adolescer: o espetáculo de todos nós

Por
Sul 21
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Por Ângela L. Becker

Já é bem conhecido o quanto “fazer teatro” faz parte do mundo adolescente. Ensaiar-se em “ser outro” é a dinâmica própria de quem está “em passagem”, por isso mesmo seja no grupo da escola, no clube do bairro ou mesmo nos cursos de artes dramáticas, o “apresentar-se” a uma plateia é importante a alguém que ainda não sabe bem quem realmente é ou quem pode vir a ser neste mundo. “Ser visto”, “soltar a própria voz”, “sondar novos espaços” faz parte de uma trajetória de “produção de si” que o adolescente é certamente o maior porta-voz. Por isso mesmo ensaiar-se numa das artes cênicas ( música, teatro, dança) é tão frequente no período que chamamos de adolescência, mas que não se reduz a este pois “estar em passagem” diz respeito a uma condição essencial do sujeito contemporâneo, seja a idade que tiver. É o resultado destas experiências que fizeram nascer a peça teatral “Adolescer”, concebida e dirigida por Vanja Ca Michel, uma professora de teatro que com sensibilidade e extremo interesse pelos jovens deu “corpo” e arte a estas criações que fazem a função de rituais de passagem na cena moderna.

“Adolescer” completou este ano 10 anos em cartaz. Nasceu do contato da diretora com os adolescentes de escolas, de pesquisas feitas sobre o mundo adolescente e do apoio de alguns profissionais. A peça parece não ter a ambição de ser conhecida como um grande espetáculo, mas sim a de ser vista por muitos adolescentes, de mais de uma geração. O que envolve na peça de Vanja é o que poderíamos chamar de “honestidade dramática”. O elenco é de adolescentes falando de seu próprio mundo, com sua própria linguagem, através da dança e de diálogos cheios de humor. A honestidade vem da impressão nítida de que os adolescentes tomam conta do espetáculo, sem pretensões de grande dramaticidade.

”Colocar em cena” o que se passa na adolescência, como fez Vanja, é acreditar na adolescência como arte, possibilitando aberturas e novos caminhos de interpretação aos temas que dizem respeito a esta operação psíquica. O valor neste caso é sair do discurso técnico ou educativo e possibilitar que cada um possa ali sugerir um pedaço de caminho ou saída possível. O espetáculo é tão dinâmico que renova constantemente seu elenco, acrescenta coreografias e cria textos com novos diálogos. Assim como a adolescência, a composição do espetáculo é móvel, transitando no tempo e no espaço, permitindo todo tipo de identificações com as questões e estilos que apresenta. Também como o “estar em passagem” da adolescência, o espetáculo é nômade, percorrendo várias cidades e enfrentando todo tipo de condições (as vezes precárias) para tornar possível sua apresentação .

Os temas que “Adolescer” aborda é assunto que diz respeito a todos, pois a adolescência é mais uma condição psíquica que caracteriza nossa modernidade, do que uma etapa da vida. Quem somos nós, o que fazer com nossas escolhas, com a incerteza do caminho a seguir e como lidar com nossas perdas diz respeito à intimidade de cada um, por mais adulto que se proponha a ser. Apesar de colocar em cena questões muito sérias, o tom do espetáculo é de alegria, o espectador aos poucos vai sendo levado a mergulhar no clima de comicidade, musicalidade e movimentação no palco e vai descobrindo que há mais adolescência nele do que imaginava. O estilo cômico e criativo da peça parece romper as resistências da platéia abrindo verdadeiras portas de diálogo. Os temas que veiculam questões cruciais e difíceis entre as gerações como: a incomunicabilidade entre pais e filhos, o alcoolismo na família, a drogadição dos filhos, a solidão, o suicídio, o bulling, a sexualidade e as difíceis relações com a autoridade são abordados com leveza, mas com a coragem de um convite para implicar a todos no assunto.

A peça se atualiza a cada ano, para poder incluir novas imagens da adolescência e colocá-las também na conversa. O resultado é a mistura de velhos e novos estilos de adolescer, incluindo representantes de grupos como Hippies, Emos, Coloridos, Rockeiros e ainda os adeptos à cultura Japonesa. Através deles, situações presentes nas diferentes experiências da iniciação sexual: a gravidez precoce,o aborto, a homossexualidade, a inibição, o “ficar”são representados através de pequenas cenas. A idéia parece ser: tocar no assunto, colocar em cena a questão, instigar o espectador em “pensar sobre”, sem pretensões de apresentar soluções pedagógicas, morais ou de qualquer resposta de especialidade científica.

Uma das cenas marcantes fala do luto que ficou esquecido para o adulto e que o adolescente que está em plena vivência, o faz lembrar: a saudade de seu ser criança. Esta é revivida no adulto quando os pais exigem que seus filhos cresçam, mas por outro lado não conseguem suportar suas mudanças, suas tentativas de indepêndencia. A cena que bem representa a questão mostra um dos adolescentes que é enrolado por um fio, na medida em que os pais falam sem parar, o fio do discurso dos pais: o discurso que fala da independência, mas que na realidade amarra, pela carência mesma dos pais e a impossibilidade de se separar daquele que um dia foi criança. Linda cena que representa o quanto crescer e separar-se está sempre presente na vida psíquica, o que muda na vida é apenas a posição dos papéis.

A dança é um ponto de enriquecimento da peça, pois faz a narrativa através do corpo, o que é próprio de quem está re-fundando sua imagem corporal. A coreografia mistura jazz, street-dance e rock com uma trilha musical muito variada. Certamente o texto não é só falado, nem atuado, ele é dançado também. O corpo fala, o que convoca a falar também o corpo do espectador, que no esforço de situar-se na adultez acaba congelado e estereotipado.

Iniciativas deste tipo de trabalho como o de Vanja merecem nossa atenção e incentivo, pois na sua simplicidade acabam fazendo da arte teatral um verdadeiro momento de encontro com questões da subjetividade contemporânea. Mais valor ainda se são fruto de um trabalho criativo dos próprios adolescentes, que tem na dramaticidade sua expressão espontânea e o quanto nos ajudam a pensar e reescrever nossa própria história.

Peça: “Adolescer” – WWW.adolescer.com.br
Cia: Déjà-Vu
Direção: Vanja Ca Michel

Ângela Lângaro Becker é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, doutora em Psicanálise pela Universidade Paris 13. 


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