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24 de junho de 2012
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08:59

A consciência de Molly (Comemorando o Bloomsday)

Por
Sul 21
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O poeta real sabe que as palavras e as coisas não são a mesma entidade e por isso, para estabelecer uma precária unidade entre o homem e o mundo, nomeia as coisas com imagens, ritmos, símbolos e comparações. As palavras não são as coisas: são pontes entre elas e nós.

Octavio Paz

Num conhecido e esclarecedor ensaio, Edmund Wilson diz que James Joyce é o grande poeta de uma nova fase da consciência humana. O mundo de Joyce está sempre mudando, conforme seja visto por diferentes observadores em tempos diferentes, como também muda a própria consciência humana. Um mundo assim, não pode ser descrito  com abstrações artificiais e com fórmulas do passado. Ou sob a ótica de instituições, grupos e indivíduos  estáveis ou situações psíquicas estáveis, dualismos entre o bem e o mal, espírito e matéria, instinto e razão, conflitos entre paixão e dever, entre ética social e interesse pessoal. No imenso mar joyceânico estas concepções não são ignoradas, elas lá estão nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam, mas como na física subatômica  e na filosofia modernas, são todas reduzidas a um “continuum” de eventos infinitamente pequenos.

Ainda segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa implacável e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes”. Isto seria verdade, se excluíssemos Homero, Dante, Shakespeare e Freud dos quais o autor de Ulisses é um digno companheiro intelectual. Sem nos esquecermos – em grau menor, é verdade – de Breton e sua caterva surrealista com a qual, pioneiramente, Joyce comungou e dela libertou a técnica literária do fluxo de consciência. Só que em vez de reproduzi-lo  sem qualquer controle, como na escrita automática dos surrealistas, disciplinou este fluxo, enquadrando-o no esquema  de uma composição rigorosamente literária. Talvez seja este o motivo pelo qual o surrealismo não conseguiu criar uma nova literatura embora, na opinião deCarpeaux, o efeito do surrealismo sobre os não surrealistas é, por enquanto, mais importante do que o próprio surrealismo em si.

O recurso literário de Joyce, consubstanciado exemplarmente no monólogo interior ou fluxo de consciência de Molly (Penélope)  no último trecho de Ulisses, baseia-se na psicanálise a qual Joyce conheceu com seu amigo e aluno Ítalo Svevo ( A Consciência de Zeno). Mas, também foi elaborado graças  à  erudição de Joyce e ao seu conhecimento da natureza primeva da consciência e da importância fundamental da palavra na evolução da espécie humana. Como se sabe, a consciência ( e seu alter ego,o inconsciente ), a capacidade de simbolização, o pensamento abstrato, surgiram no cérebro dos hominídios milhões de anos antes destes aprenderem a falar. O inconsciente é a consciência do homem primitivo ou esta é o homo, domesticado pela cultura.

E o inconsciente  não conhece regras morais. Também ignora outras convenções e normas morfológicas e sintáticas da linguagem tais como aparecem nos sonhos e no romance de Joyce. Dessa maneira, o desterrado dublinense, baseando-se na psicanálise e na lingüística, antecipou o surrealismo.

E diferentemente dos surrealistas e sua linguagem  automática, Joyce inova. Em vez de reproduzir, sem controle, o fluxo do (in)consciente, disciplinou-o, enquadrando-o no esquema de uma composição rigorosamente literária.

E assim, segundo a apropriada expressão de Álvaro Lins, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Não desdenhou, nem o que está acima nem o que está muito abaixo do homem natural. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro o que Joyce busca apresentar em sua obra.

E no monólogo final, profundo, noturno de Molly Bloom encontra-se o mais saboroso  (re)sumo de Ulisses. Molly representa o corpo, a terra, a rapsódia da carne como escreveu Edmund Wilson. Como a terra, ela concebe  vida aos personagens e sente um parentesco intensamente maternal por todas as criaturas vivas como seriam as mulheres nas primitivas sociedades matriarcais (Mutterrecht) descritas (ou imaginadas) pelo gênio de Johan Jakob Bachofen.

São estas idéias e sentimentos ctônicos- maternais que Joyce nos lembra do começo ao fim de seu romance. No ínício é Stephen Dedalus, acicatado pelo remorso quem diz: “Mãe ! Deixa-me ser, deixa-me viver “. No fim é a grande mãe que volta na figura de Molly repetindo a palavra SIM,a palavra mais proferida pelas mães de todas épocas e culturas.

“…e  os rosais e  os jasmins e gerânios e  cactos e Gibraltar eu mocinha onde eu era uma Flor das montanhas sim andaluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meu peito todo perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims “.

SIM !

Franklin Cunha é médico


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