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30 de maio de 2012
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08:59

Perdas delicadas

Por
Sul 21
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Por Maria Ângela Bulhões

Em meu trabalho clínico encontrei-me com uma paciente que usava de artifícios para lidar com uma importante perda. Seu pai falecera e ela criou no interior de seu quarto (com seus pertences) um boneco que lhe fazia companhia. Neste período, ela costumava ouvir a voz de seu pai pedindo para que ela não o abandonasse. Na verdade, era ela que não queria ser abandonada pelo pai, era ela que não queria sentir-se só. A realidade encontrava-se comprometida apesar de ela reconhecer o fato da morte de seu querido pai. A sensibilidade de seus familiares e o médico que a atendia ajudaram-na a buscar alguém que a acompanhasse no percurso de luto que precisava fazer. Ela teria que abrir mão do totem que construíra para poder levar o pai consigo apenas no coração e nas lembranças que este lhe deixara. A construção simbólica realizada no trabalho de luto exige de cada pessoa o seu tempo.

A arte imita a vida. Este encontro clínico lembrou-me do filme que assisti há alguns anos intitulado Garota Ideal . Esta película me surpreendeu pelo ¨fino trato¨ com que apresentou as relações humanas. O personagem principal da história, um jovem, possuía uma grande dificuldade de lidar com os laços afetivos e, em determinado momento de sua vida, por circunstancias especiais, acabou comprando uma boneca inflável e começou a tratá-la literalmente como sua namorada, inclusive em espaços públicos.

A família, no início, não soube como lidar com a situação, já que ele apresentava a boneca como se ali estivesse uma pessoa real. Levado a uma terapeuta, esta compreendeu a situação pela qual o jovem passava, acolhendo o que ele lhe contava com muita delicadeza. Ela percebeu que a imaginação dele estava trabalhando para tentar resolver os conflitos existentes na sua história de vida,mesmo que tais conflitos estivessem cobrando o preço da perda da realidade.

Aos poucos, a comunidade à qual pertenciam foi entrando na ¨viagem¨ do jovem.Todos na pequena cidade se conheciam ao ponto de serem capazes de suportar suas estranhezas.

O filme Garota Ideal nos leva lenta e delicadamente para esse universo de imaginação e nos convoca a participar da rede de suporte que circunda o personagem principal. Lentamente ele vai fazendo a travessia desse momento difícil de sua vida, conseguindo, inclusive, abandonar sua namorada imaginária e abrir espaço para aproximar-se de possíveis laços de afeto.

O mundo em que vivemos exige constantemente resoluções rápidas para negócios, conflitos e também perdas. Não temos “tempo a perder” e o velho chavão é repetido incansavelmente: “tempo é dinheiro”. Meio atordoados, vamos tentando dar conta de todos os comandos, de todas as exigências.

Quando alguém parece estar fora desse ritmo, sente-se excluído, sem condições de fazer parte. Perder pessoas importantes em nossas vidas, e não apenas por morte, com certeza faz parte de nossa existência, mas tratar a construção do luto com a delicadeza que deve ser tratada faz parte de nossa humanidade. Por vezes, precisamos ver filmes e ler livros para nos reaproximarmos de nossa própria humanidade!

Maria Ângela Bulhões, psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA; psícóloga do ambulatório do Hospital Psiquiátrico São Pedro.


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