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22 de maio de 2012
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13:35

O fio da loucura

Por
Sul 21
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Porto Alegre recebeu até poucos dias atrás a exposição das obras de Arthur Bispo do Rosário. A mostra foi muito bem intitulada de “A poesia do fio”. Pois, foi com os fios desfiados das roupas dos demais pacientes do hospital psiquiátrico, onde viveu a maior parte de sua vida, que ele criou suas 804 obras, hoje sediadas no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro. No sul desembarcaram uma parte delas, 239 precisamente, organizadas em um só recanto do Santander Cultural, segundo o curador da mostra, como “alusão cenográfica às celas fortes que contemplam alguns aspectos presentes, entre tantos outros, no universo da obra e no pensamento do artista”. A cela forte se refere ao quarto úmido e escuro que Arthur Bispo confeccionou e guardou suas obras até seu falecimento em 1989. A maioria de suas produções eram peças bordadas com esmero, além de coleção de objetos organizados, estandartes, etc. Em vida foi visitado e reconhecido como artista, mas foi após sua morte que suas peças alcançaram o mundo e a notoriedade.

Na antevéspera do Natal de 1938, Arthur Bispo do Rosário com então presumíveis 27 anos, começa seu périplo pelos manicômios. Nesta noite ele teria recebido os anjos que o reconheciam como Jesus Cristo. Ele jurava que uma cruz luminosa estava grafada em suas costas. Em nome desse reconhecimento, haveria um dia futuro em que ele julgaria os vivos e os mortos. Para este dia, deveria portar uma roupa especial e, ao longo de muitas décadas de bordados, Bispo do Rosário teceu o “Manto da apresentação”, a peça mais impressionante da mostra. Ali ele bordou miniaturas dos “existentes na Terra”, tendo como pano de fundo um cobertor avermelhado; fitas e cordões coloridos caem por cima da veste. Em cada canto do Manto aparecem novos símbolos: tabuleiro de xadrez, dominó, mesa de sinuca, dado, escada, tesoura, bicicleta, um objeto circular feito mandala, fogão, números, palavras, mapa do hospital psiquiátrico, com pavilhões, pacientes, funcionários, etc. No avesso aparecem os nomes daqueles que prometera salvar do apocalipse, carregando-os junto ao corpo quando da dita passagem.

Os fios de Artur parecem ter unido os pontos de sua existência, permitindo não sucumbir à morte. Como ele mesmo dizia “o louco é um homem vivo guiado por um morto”, ou ainda: “Eu já fui transparente. Às vezes, quando deixo de trabalhar, fico transparente de novo. Mas normalmente sou cheio de cores”.

A espera pelo dia da anunciação interpõe uma distância com o fim, morte anunciada, mas não atuada. Os fios de Arthur tramaram a vida com aquilo que ela supõe: os laços as origens, com a experiência e com o porvir. No Manto constam os elementos desta tríade. Das origens Bispo do Rosário trás a tradição dos bordados de sua pequena cidade natal, Japaratuba, em Sergipe. Ele carrega ainda, em seu avesso, os nomes próprios que aludem ao seu próprio sobrenome. Na parte externa figuram os elementos de suas experiências em hospitais psiquiátricos, os jogos, os objetos, os lugares e suas geografias, etc. O futuro se deduz do uso do Manto, veste especial para o aguardado “dia da verdade”.

A reunião desses fios indica que a roupagem divina revestiu Arthur Bispo do Rosário da condição de existir, juntando o valor artístico de suas obras, com o valor terapêutico que proporcionaram. Para além das várias condições adversas da doença, da pobreza e dos manicômios da época, Arthur bordou seu nome no cenário do mundo.

Lúcia Alves Mees, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)


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