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8 de maio de 2012
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12:46

Morre o motorista de Fellini e Antonioni?

Por
Sul 21
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Por Robson de Freitas Pereira *

Nota sobre um ato falho –

Quando vi a manchete da notícia li: morre o motorista de Fellini e Antonioni. Pensei: que estranho darem destaque a morte de um motorista.

Mas, como para todos nós um instante de visão basta para tentar fazer sentido; associei logo ao motorista de Jacques Lacan: AbdoulayeYerodia, marido de Glória (fiel secretária de Lacan), que o transportou várias vezes em seu Fiat 147. Carro de Abdoulaye que ria do fato das pessoas pensarem que aquele carrinho era do importante psicanalista. Isto ficou imortalizado em fotografias nos mais diversos cenários parisienses, principalmente na chegada ao famoso Seminário que ele sustentou por mais de 25 anos. Se nós, psicanalistas, ficamos curiosos sobre este motorista que anos mais tarde nos guiava na visita ao consultório de Lacan (5, rue de Lille) e protagonizava momentos de extrema emoção ao recordar-se do mestre (chorava copiosamente), talvez a morte do motorista dos cineastas pudesse justificar uma nota no jornal.

Uma dúvida pragmática sobreveio: como alguém poderia ser motorista de dois cineastas tão distantes ente si? Explico; como uma pessoa teria tempo para ser motorista destas duas figuras simultaneamente? Dom da ubiqüidade? Talvez fossem épocas diferentes servindo a cada um: durante um tempo trabalhou para Fellini, indo de um cenário a outro, de Rimini a Roma, carregando recordações que o cineasta transformava em sonhos na tela. Depois passou a conduzir Antonioni, por ruas sombrias, amores incestuosos e fotografias misteriosas. Mas mesmo assim, o raciocínio não era convincente; uma vez que sabemos não poder servir a dois senhores tão exigentes e ciumentos simultaneamente, a não ser no inconsciente. Este espaço íntimo e externo ao mesmo tempo, lugar da outra cena e que abriga ordens contraditórias como se elas fossem perfeitamente possíveis. Vide nos sonhos, que Freud chamava de “via régia para o inconsciente”: nenhuma contradição entre estar morto e conversar com os vivos, ser esfaqueado e não verter sangue, transar com quem nunca imaginaríamos e de maneiras totalmente inverossímeis na realidade.

Formação do Inconsciente que se manifestou neste relance de olhar e em poucos segundos; pois ao lermos novamente o título e a matéria reconhecemos o engano: morre o roteirista de Fellini e Antonioni. Está certo, roteiro em espanhol é guión, o que poderia nos ajudar no deslizamento significante; guionista, motorista, persona que dirige para os diretores, alguém que conduz os mestres para as locações de seus filmes e de suas vidas.

Várias vezes gostaríamos de nos deixar conduzir;fantasia recorrente. Ter alguém que dirigisse motorizada e tecnologicamente nossa vida, que soubesse o caminho a seguir antecipadamente para que não nos preocupássemos em tomar as decisões sobre qual direção a seguir agora, qual escolha a ser feita. As religiões, de uma maneira em geral se valem deste sonho: nosso roteiro está traçado, é só saber ler os sinais ou acreditarnaquele que sabe interpretá-los. Claro há também os que se jactam por saber qual o caminho e dizer pormenorizadamente as ruas a serem tomadas, seja por seu sinesíforo (para lembrar de Odorico Paraguaçu, criação de Dias Gomes) ou evitar que o motorista/taxista de ocasião dê uma de esperto e nos afane um trocado a mais. Porém, isto não dura muito porque esta minúcia é só uma maneira de se defender de uma fantasia de que no fundo o Outro sabe o caminho, e, por isto mesmo,pode querer nos enganar. Afinal, um deus enganador está presente entre nós desde o discurso de Descartes, ou naquela interpretação do Gênese onde Adão, instado pelo Criador, nomeia todas as criaturas e espécies viventes. Extenuado em cumprir a tarefa, faz um intervalo para descansar nos braços de Eva que semeia a interrogação. Afinal, porque trabalhar tanto para um deus que de antemão já saberia o nome das coisas e dos seres? A partir daí, a história é bem conhecida de todos.

Por via das dúvidas vou reler toda a notícia, além da manchete na capa. Pode ser que eu tenha nova surpresa.

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A notícia original:

Morre roteirista de Fellini e Antonioni

Italiano Tonino Guerra escreveu “Amarcord”

Tonino Guerra, um dos principais roteiristas do cinema italiano, morreu na quarta (21/3), em casa, na cidade de Santarcangelo di Romagna, no nordeste da Itália, dias depois de completar 92 anos.

Guerra foi um dos principais colaboradores do diretor Michelangelo Antonioni (1912-2007) e o ajudou a criar clássicos como “A Aventura” (1960), “A Noite” (1961), e “Blow-Up: Depois Daquele Beijo” (1966). A parceria foi até o último filme do cineasta, o segmento “O Fio Perigoso das Coisas”, dentro do colaborativo “Eros” (2004).

Indicado ao Oscar de melhor roteiro em três ocasiões por “Casanova 70” (1965), de Mario Monicelli, “Blow-Up” e “Amarcord” (1973), de Federico Fellini (1920-1993), ele escreveu cerca de 120 filmes e foi premiado em Cannes por “Viagem a Citera”, de Theo Angelopoulos, em 1984.Tonino Guerra era casado com a russa Lora e deixou um filho, Andrea Guerra, compositor de trilhas sonoras.

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Exposição

“Tutto Fellini”, mostra de filmes, desenhos de sonhos e textos do cineasta italiano está sendo exibida no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro. http://ims.uol.com.br/Programacao/D938

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* Psicanalista; Membro da APPOA. Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).
E-mail: [email protected]


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