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15 de maio de 2012
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08:00

E Pina Bausch tirou Wim Wenders para dançar…

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Sul 21
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Por Lucia Serrano Pereira (*)

Plateia lotada, expectativa forte, um dos grandes eventos em Porto Alegre naquele ano. As luzes se apagam, inicia a apresentação da companhia de dança tão esperada, desta vez é ao vivo. A captura é imediata. Uns minutos depois, discreto movimento umas poucas fileira à frente, alguém cruza bem no meio da sala. Lembro aquele instante fugaz do incômodo dessas situações, na interrogação íntima do por que não chegou antes? Aquela ponta de vergonha que se compartilha nessas horas por também fazer parte da plateia (vão nos achar uns mal-educados) – logo na apresentação da Pina Bausch, e na fileira do meio! E na penumbra a mulher que passava lentamente, vamos acompanhando a sombra, pequena, magra, suave, parece com… é ela! E Pina Bausch sentou perto de mim, para assistir dali um tempo de sua dança.

Já com ele, o encontro foi mais formal, iluminado, Wim Wenders era o palestrante mais esperado daquela temporada no cenário das conferências na cidade. Presença bacana, tipo intelectual mais ou menos despojado, fala do viajante. Dos travellers, na diferença do estereótipo do turista. Dos filmes que faz inspirado no que ele chamou de “sense of place”.

E agora, mais recentemente, o encontro. Ele dirige o documentário que homenageia Pina, aliado ao grupo, à companhia que ela criou e com a qual trabalhou toda a vida, desafiando juntos o peso da sua ausência (dança que ficou órfã, mas não sem transmissão).

Não vou na direção de “resenhar” ou descrever o documentário, deixo a cada um recolher a sua parte dos efeitos absolutamente incríveis da experiência que se vive com o Tanztheater, a dança-teatro de Pina pelo olhar de Wim Wenders. No making off podemos acompanhar o ballet do diretor, os giros das câmeras e gruas junto aos bailarinos, e seu depoimento – mesmo com todos os recursos disponíveis, tantos ângulos possíveis, ele escolhe apresentar a obra como Pina a concebeu: sempre do lugar do público ( lá mesmo onde ela foi sentar).

O enigma para quem assiste é – como Pina pode criar essa espécie de universo de arte tão intenso, com tal singularidade, com linguagem tão própria? Gestos, movimento,todos os cenários, coreografia, música, figurinos, iluminação. Mas também dança e teatro, artes plásticas e cinema e fotografia?

Destaco pelo menos um elemento do conjunto, um dos takes registrado/inventado por Wenders que ficou reverberando por dias quando assisti. Parte de um fragmento de “Pátio de encontros” (Kontakthof) que por sinal havia sido apresentado pela companhia em sua primeira incursão ao Brasil, em 1980. Passando também em Porto Alegre.

Em cena três grupos – velhos, adultos, jovens – homens e mulheres. As mulheres se deslocam em linha, vem para a frente, as vemos mais de perto. Param e aí vem o gesto bem marcado, cada uma, mãos no cabelo. A câmera corta e no lance seguinte, a seqüência desse gesto – as mãos que agora passeiam pelos cabelos e seguem descendo pelo corpo já são de outras mulheres. As jovens ficam velhas em um segundo, cabelos brancos, concluindo o movimento. Os homens vão até essa linha e as substituem num giro. A saída deles é outra, os braços à frente, as mãos com o dorso para baixo. Quando as mãos estendidas se movem e mostram as palmas, a mágica operou de novo: os velhos deram lugar aos jovens, que ainda em nova volta das mãos se transformam nos adolescentes.

Seqüência de gestos, expressões e substituições que sideram o espectador no turbilhão da dança do tempo, do registro dessa passagem nas vidas em contato fugaz, tudo em traços mínimos, em poucos segundos. Wim Wenders dançou com Pina, sem dúvida. O efeito de corte e montagem integrado à coreografia, assinatura de um e de outro em contato. E ele dirige, testemunhando momentos de tal concentração e densidade que, diz, é como se ela estivesse ali, dirigindo também, olhando a cena por sobre seus ombros. Kontact.

O que é surpreendente nas artes de Wim Wenders e de Pina Bausch é um ponto comum a ambos, talvez uma forma de abordar o mundo. “Sense of place”, ele resumiu. Uma espécie de senso, sentimento ou sintonia que é relativo à aquele lugar. Local, linguagem, espaço, cores da vida do outro ao qual se foi “visitar”. Isso foi o que animou sua curiosidade, diz Wim Wenders, o que o tornou um traveller, descobrindo o mundo em recortes particulares. E a obra foi surgindo desta trilha.

Pina Bausch não fez também algo desta aventura? Muitas de suas peças foram fruto das viagens a lugares outros, à alguma imersão realizada com seu grupo, por vezes com toda a companhia, outras com alguns dos bailarinos e equipe (como foi no caso de Salvador, a incursão na Bahia), pesquisando, respirando, buscando o clima, o gesto, a música, a vida daquele lugar para então coreografar, armar a dramaturgia.

O que faz a força dessas criações? Insondável, mas em um ponto podemos afirmar a presença dessa particularidade da matéria prima, a que não busca neste outro simplesmente o pitoresco ou o exótico – miragem do fascínio do estrangeiro. A busca é muito mais ousada, parte de um interesse forte em fazer o contato com as formas pelas quais neste outro lugar se lidam com as questões cruciais da vida. O amor, as intensidades, os lutos, os ódios, a alegria, as crueldades, o desamparo, as invenções, as celebrações, os enigmas das passagens, o trato com o tempo… E poder de alguma forma “dançar disso” como oferta e convite fulgurantes, comoventes, às ressonâncias em cada um de nós.

(*)  Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


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