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8 de maio de 2012
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15:55

A chave do Pavilhão

Por
Sul 21
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Em 1986, mudei-me de Santa Maria para Porto Alegre. Havia recebido convite da Editora Tchê! para assumir a sua gerência gráfica e, logo, acumulei também atividades de editoria. Com 31 anos, a minha atividade esportista de “alto rendimento” havia sido interrompida aos 17, em pavoroso acidente de trem. Os médicos levaram bom tempo para salvar minha perna esquerda. De modo que fiquei uns três anos ainda meio rengo. Neste tempo de convalescência, as tendências boêmias manifestadas desde cedo se acentuaram na juventude, agora na estética charmosa de uma bengala, óculos redondos de intelectual e o esforço vertiginoso para ser cultural e politicamente consequente. Fiz algumas tentativas para readquirir a forma física daquela invejável condição que tinha-me salvado a vida em 1972, retirado dos escombros entre vários mortos. Porém, quando atingia uns 60 a 70%, “estourava”, conforme o jargão futebolístico.

Aprendi a conviver com a impossibilidade de retornar aqueles rendimentos conseguidos anteriormente com a natação, vôlei e futebol. E continuei a meia boca, fazendo as três coisas amadoristamente, e mais o prazer da equitação gaucha. Aquele negócio de jogar uma partida pela confraternização. No mais, já estava atuando nos times do jornalismo, do teatro e da história.

Em Porto Alegre perguntei ao Ortiz, sócio da Tchê!, onde poderia manter o meu hábito esportista. “Tem um departamento amador lá no Grêmio que eu frequento.” Inscrevi-me e comecei a atividade. Era um negócio que juntava espécies raras. Encontros de três noites por semana, segunda, quarta e sexta-feira. Iniciava com alongamentos, corrida de meia hora a 45 minutos na pista de atletismo em torno do campo oficial do Olímpico, “ginástica, musculação”, etc. Aos poucos fui conhecendo e reconhecendo os personagens da grande turma. Alguns ficavam em atividades brandas, outros tinham aspectos de fundistas, corriam em maratonas. Muitos, no passado, haviam desistido da carreira de jogadores, e escolheram outras profissões (empresários, médicos, engenheiros, jornalistas, dentistas, etc.). Ex-atletas de renome. Tudo involucrado na classificação de “veteranos”.

Do grande grupo destacava-se a confraria dos boleiros. Logo me enturmei. Depois dos exercícios tinha treino em um campo suplementar. O seu denominativo dizia tudo: “Carecão”. Pelado, com resquícios de grama somente nos escanteios. Três dias de exercícios e treinos por semana para amadores, convenhamos! Na sexta se fazia um apronte para jogar no final de semana, como convidados, ou em torneios e campeonatos. Às vezes era sábado e domingo, viajava-se e, inclusive, de vez em quando, fazia-se a preliminar do time oficial de ex-atletas profissionais. Primeiro benefício: conheci verdadeiramente Porto Alegre jogando em praticamente todos os campos de várzea.

O Carecão era um espaço extraordinário. Dele poderiam decorrer diversas teses. Além de ex-atletas famosos, ali transitavam jogadores excepcionais que não tiveram a oportunidade de se profissionalizar, ou escolheram outras atividades, mas continuaram praticando o esporte; pernas de paus, que mesmo na veteranice continuavam insistindo, invariavelmente os mais assíduos; e os que ainda davam pro gasto…

Também treinava no Carecão o Pavilhão, time amador do glorioso Airton Ferreira da Silva, ex-zagueiro, uma legenda do Grêmio e do futebol brasileiro-mundial, que faleceu recentemente. A sua equipe era formada por ex-atletas e amadores. De forma que existia um intercâmbio, mesclas entre os dois grupos. Dessa relação saia o time que disputava o campeonato praiano no verão, além de outros selecionáveis do Airton. Ou seja, com bom patrocínio, tinha praia e festa sem tirar do próprio bolso. E os mais necessitados ainda recebiam algum cachê.

Todavia, o mais espetacular era jogar junto com o Airton. Até a década de 1990, mesmo com um problema sério no joelho, ele ainda participava das peladas. E aqueles boleiros conservavam todas as virtudes e defeitos de seus tempos gloriosos. Em campo, ainda ocorriam coisas extraordinárias. Talvez, o meu maior orgulho desportista tenha sido motivado pelo Airton. Numa jogada de área, em que fazia a sua cobertura, depois de tirar a bola do atacante adversário e sair jogando, no ato, ele gritou: “Este é o meu centromédio!” E na brincadeira estava também no meio de campo o Gaspar, simplesmente o maior na posição. Com sua amabilidade afetiva, quando nos encontrávamos publicamente, apesar de eu achar que estava entre os que davam pro gasto, chamava-me de “meu centromédio”. Vindo dele, não precisava de outra identidade.

Mas como se sabe, o esporte amador é um jeito de se desidratar para considerar a cervejada uma decorrência do treinamento. A reposição do líquido perdido, de aminoácidos, nutrientes, em que entra principalmente o churrasco. Nossas concentrações pós-treinamentos ou jogos eram em restaurantes ou nas residências dos “atletas”. Quem não podia pagar, a vaquinha entre os demais cobria a despesa. Nas rodas de conversa apareciam histórias reveladoras de um mundo muito mais complexo do que a obviedade das regras de jogo.

Certa noite, com a madrugada reduzindo o grupo àquela cumplicidade dos poucos, o Airton estava disposto a falar. Perguntei-lhe o que mais lhe incomodava durante a sua carreira. “A pressão para ser um zagueiro truculento.” Como se sabe, a sua história foi marcada pela elegância, pelo desarme do adversário jogando “na bola”, a saída de jogo, o domínio excepcional e jogadas de habilidade. “Porra!, um negrão forte, deste tamanho, dá no meio deles…” Nessas pressões haviam duas ofensas. Uma ao futebol. Outra às etnias. Airton era um cafuzo-mameluco, um mestiço tipicamente brasileiro. A simploriedade esportista de dirigentes, conselheiros ou palpiteiros, reduzia-lhe também a diversidade e a riqueza étnica num classificativo grosseiro.

– E qual era a tua resposta? – inquiri.

– Eu ficava quieto. Dava um sorrisinho. E ficava na minha.

– Por quê?

– Eu sempre pensava: se eu tenho a chave porque vou rebentar a porta!

Airton, além de tudo, era um filósofo. Ele era excepcional porque pensava. Não se tratava de uma capacidade natural. Ele se construiu como jogador desenvolvendo os fundamentos do esporte que praticava, mas, com base na observação dos outros, refletia sobre a sua experiência. Este era um homem que viveu a singularidade de ser parte de um escambo. Caso estivéssemos na Antiguidade grega, teríamos mais um capítulo da mitologia. Jogador emergente do Força & Luz, na transação de sua compra, também foi incluído um pavilhão. A materialidade da mercadoria impregnou-se nele como codinome. Todavia, Airton inverteu o significado. Nele, Pavilhão passou a ter o designativo de um ser-trincheira, um zagueiro-muralha, um baluarte de defesa do Grêmio.

Talvez, a história do Airton seja o paradigma para o próprio entendimento do futebol. Ele é o exemplo deste esporte “como jogo”. Faz uma enorme diferença pensar em seus praticantes como “jogadores” e não exclusivamente “como atletas”. A condição atlética é o pressuposto para o jogador exercer a sua atividade. Porém, não necessariamente um “atleta”, um sujeito de excepcional preparo físico, chegue a “jogador”, por mais que insista e iluda cartolas, mídia e torcida. O futebol é, em essência, um jogo de habilidade. “Jogar” requer pensamento complexo (não necessariamente escolaridade). Tenho visto dirigentes e colegas da imprensa postular pela primazia da garra, da dedicação, do esforço. São raros os que destacam a necessidade da inteligência, a preferência por “jogadores” no campo de jogo. Preferem “atletas”. Além da questão conceitual, a apologia da competição como consagração do esforço físico tão-somente conduz a mediocrização do futebol.

Por essa razão é que predomina a prática do futebol como o resultado de esforço repetitivo, a assimilação pela repetição; ou seja, o adestramento. O que se faz com o animal instintivo, se aplica aos “atletas”. No método contrário vigoraria o aprendizado dos fundamentos e a sua aplicação ao jogo. Ou seja, dar-se-ia sentido ao treinamento.

Por consequência, no império dos medianos, da consagração do óbvio, sem o encanto do “jogo” – onde se gera a alteridade de respeito e celebração também do outro, da aceitação e reconhecimento do diferente -, a tendência confirmada é que o espaço futebolístico seja ocupado também por outras manifestações fúteis e competitivas da vida; em seu grau mais decadente, a barbárie já presente nos estádios e emulada para o cotidiano. Os emblemas dos clubes, ao perderem o imaginário de equipe mais inteligente, talentosa, pensante, e condicionante do jogo como parte de habilidades dignificantes da capacidade humana, barbarizaram-se como dísticos competitivos de tribos destruidoras dos adversários. Com todo o aparato potencializado pela tecnologia e mobilização emotiva das massas, retornamos à obscuridade primitiva.

chave do Airton poderia abrir um método civilizatório no mundo do futebol.


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