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30 de abril de 2012
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22:37

Shame!

Por
Sul 21
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Por Otávio Augusto Winck Nunes1

Uma das cenas cinematográficas mais marcantes do ano, do meu ponto de vista, é sem dúvida, Sissy(Carey Mulligan) cantando New York, New York, no filme Shame, de Steve McQueen. Quando possível, entro no you tube para apreciar a cena e a interpretação marcante da atriz.

New York, New York, está para os americanos (e para aqueles que cultuam seus ideais) como Aquarela do Brasil está para os brasileiros. É a versão americana do samba exaltação. A letra não é só um estímulo para a superação é, também, a confiança na força do pensamento: se vencer em New York, conquistará o mundo. Se perder, bem, se perder, pode ser que exista outra província – neste não mais tão vasto mundo – de segundo escalão, que sirva de substituta. Mas aí é outra história. Matriz é matriz.

No filme, New York, New York, é cantada em ritmo lento, muito lento. Cada palavra é dita numa cadência que em nada lembra a exaltação do vencedor. Lembra mais a dor de cotovelo dos sambas-canções. Cada palavra é sussurrada letra a letra, como se fosse recortada no ar, dando a elas uma dimensão física, real ao som,. Sublinha dessa forma o impacto da perda, do sofrimento.

Recorto essa cena, pois a considero exemplar para o desenrolar da história. Nela, três dos personagens do filme, indicam qual a sua posição na trama. Sissy canta para seu irmão, Brandon (Michael Fassbender), que está acompanhado do seu chefe Steven (Alex Manette ). Steven fica fascinado com Sissy, pelo menos o suficiente para seduzi-la por aquela noite. Ela, por seu turno, entrega-se, por algum tempo, ao fascínio que ela mesma produz no chefe do seu irmão.

Já Brandon sofre muito mais o impacto da voz da irmã, a voz perfura seu peito. No momento em que anuncia o “topo” da montanha que é a cidade de Nova Iorque, e mais tudo o que esse topo representa, uma lágrima rola sobre o rosto do impenetrável Brandon. O primeiro furo no cerco bem armado e controlado do personagem. Primeiro sinal de sua angústia.

Sissy é a inimiga na trincheira de Brandon. Ele, quieto, misterioso, controlado. Ela explosiva, passional, descontrolada. Dois irmãos tão díspares e complementares, em diferentes matizes: da binaridade/do duplo – macho-fêmea, ao contraponto, sexo-amor.

Brandon é apresentado equivocadamente – em quase toda divulgação do filme – como viciado em sexo. E Sissy dependente ou carente de amor. Ledo engano, prezados leitores, pelo menos quanto a Brandon. Não se trata de vício em sexo. O sexo compulsivo para ele é muito mais alusivo a sua incapacidade de manter relações amorosas que qualquer outra coisa. Sexo, além de ele fazer bastante e, aparentemente, sem maiores problemas morais, é a forma mais eficaz de ligação com seu semelhante e, por conseguinte, com o mundo. Peça amor a Brandon, e ele responde com sexo. Peça mais amor, e terá mais sexo. Sexo é a maneira de responder aos apelos que o amor lhe faz.

E aí é que falha sua construção. O corpo, que porta as insígnias da diferença e do gozo sexual, não é nosso melhor aliado para sustentar qualquer projeto simbólico, característica per se dos humanos.

Estamos por demais acostumados a saber que os limites corporais são estreitos. Depender apenas do corpo (que o digam as profissões que o exploram e dele dependem – de esportistas a modelos, passando pela prostituição) até pode fazer fortuna, mas a perspectiva de futuro é restrita. Não apenas por causa do peso da idade.

Longe do moralismo, ou da condenação ao inferno por suas práticas, seria interessante pensar que a montagem de vida apresentada por Brandon é, por assim dizer, a de um corpo esquálido. Para aproveitar o corpo como metáfora: é praticamente um esqueleto. Sem o recheio da carne, dos músculos (eretos ou não), mas, principalmente, de desejo. Não há motivo algum em condenar a prática do sexo sem amor, por isso gostaria de incluir nas reflexões que, em muitas situações, o sexo não sustenta qualquer relação, e nem é relativo ao amor.

Aí apresento a minha hipótese: a vergonha (shame, em inglês), a que se refere o título do filme, é decorrente do elemento que nele não aparece: o amor. A máxima psicanalítica tem procedência (pelo menos acho que sim): amar é dar o que não se tem. Brandon dá o que tem, através do produto do seu corpo, mas não o desejo, marca pouco presente em sua vida. E por isso, a vergonha aparece através da sua impotência.

Na cena do clube de jazz novaiorquino a sedução está a espreita, para Sissy e Steven. Mas, o que atinge e fragiliza o homem no topo do mundo é a sua solidão. De que adianta olhar ao redor, estar no ponto mais alto que pôde alcançar, e nele não encontrar ninguém para compartilhar o momento ou o lugar? Mesmo tendo o Central Park como pano de fundo?

Podemos considerar que frente aos ideais que ele se propõe a atingir, um emprego razoável, um apartamento com objetos de design, ele chegou lá. Talvez isso tenha levado a leitura de que a ironia estaria presente na interpretação de New York, New York. Os personagens são “pouco ou ninguém” frente à perspectiva do que o mundo atual exige dos humanos para nos considerarmos bem sucedidos, ainda mais em Nova Iorque. Há que incluir esse elemento. Mas, acho que, levando em conta o que pensavam nossos protagonistas, eles foram longe o bastante e não se sentem em dívida com os ideais mundanos. Se há ironia, é pelo ideal de solidão, pela desertificação das relações que traz consigo, como pior companhia, a angústia.

Parênteses. Lembrem da piada do náufrago que chega a ilha quase deserta onde encontra ninguém mais ninguém menos que Sharon Stone. O náufrago mantém um affair com sua musa, mas e daí? Com quem compartilhar? De que adianta mesmo chegar e ser seu único e próprio interlocutor? Não é só por contar vantagem frente a seus pares. É bem pior sua condição.

Por isso, como trilha sonora, tenderia a pensar mais com nossos bossa-novistas: é impossível ser feliz sozinho.

1 Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).



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