Colunas>Coluna APPOA
|
3 de abril de 2012
|
11:48

Mad Men, loucos e fascinantes

Por
Sul 21
[email protected]

Por Lucia Serrano Pereira, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Os mad men originais estão todos mortos.

Ironicamente, morreram por causa do consumo dos produtos que venderam com tanto fervor. Os pulmões pifaram com os cigarros de suas campanhas publicitárias – consumidos aos maços. Os fígados derreteram com todo o uísque, gim e vodca que eles tornaram célebres – e com os almoços regados a três martinis que curtiram durante o processo…

Assim inicia o livro escrito por Jerry della Femina, reapresentando seu próprio escrito dos anos 70, espécie de cult irreverente que termina por dar origem ao roteiro da série de TV Mad Men, de Matthew Weiner.

Os mad men retornam em 2012, depois de um ano de intervalo, e, sério, não deve passar em branco. Não só pela coleção de Emmys e Globes que foram recolhendo em sua passagem, iniciada em 2007, nem só pela fina reconstrução da narrativa e estética dos sixties, mas pela força com que enlaça o espectador, nós, “leitores” de Mad Men.

Diferenças radicais? Sim, bastam as primeiras cenas. É chocante, mesmo para quem não é solidário da cartilha do politicamente correto, o encontro com um passado tão próximo: os atores fumam o tempo todo, em todas as tomadas, até levar o espectador ao limite com a cena da amamentação ao peito, o bebezinho de poucos meses, a mãe e o cigarro, todos em perfeita comunhão oral. Ou o mesmo na consulta ao ginecologista, onde na salinha fechada minúscula ele fuma e sorridente faz todas as recomendações sobre a saúde da mulher.

Mas atenção, não era só glamour não, como costumamos conferir como veredito daquele tempo. Isso aparece claramente nas situações onde a pressão aumenta, o conflito é inevitável e alguém está encurralado em pleno sorriso social, sem saber o que fazer ou como lidar. É neste ponto que o Lucky Strike é sacado; o mesmo com o copo de uísque servido cowboy na primeira reunião da manhã.

É o sonho americano, experiência de crescimento e expansão, mas ao mesmo tempo, em cima da mesa, o mal-estar. Como eles faziam? Como se viravam com a angústia e desamparo de seus anos, como nos virarmos com isso que atravessa os tempos e cada geração tem que dar conta a partir de seu contexto e seu quadro discursivo? Transitar por ficções que apresentem essas perguntas podem nos permitir arejar o trato com as nossas, justamente.

O microcosmo é uma agência de publicidade, a fictícia Sterling Cooper, e os mad men não são loucos comuns: é como se chamavam os publicitários da Madison (Mad) Avenue, efervescente e rico pedaço novaiorquino do início da década de 60. Os estereótipos estão todos – os associados mandachuvas, a galera dos jovens da criação, os redatores. As secretárias são um mundo à parte, claro que a datilógrafa desejosa do patrão não pode faltar à caracterização, mas o clichê vem junto com sua desarticulação, tudo na nuance. Ela pode estar bem interessada em se experimentar redatora, em vez de despachar e servir o gelo. E há o cliente, claro, de todos os tipos.

Genial acompanharmos as campanhas da Lucky Strike, a expansão da Volkswagen, o creme de beleza Ponds, as evoluções de marca, como a Pampers e a Heineken. A ascensão é da TV, e o olhar vai para a estratégia frente à mobilidade no social – o produto passa a ser oferecido e superdirecionado aos filões nascentes de consumidores (mulheres e negros). A publicidade inaugura sua entrada na política, isso era novidade, acompanhamos os mad men nas campanhas eleitorais de Kennedy e Nixon.

E, entre todos, Don Draper, diretor de criação na agência, talentoso, bonitão, tentando abrir caminho sem ser engolfado pelo jogo pesado do establishment, tendo ele mesmo que sustentar a trajetória de desejo e ambição sem ser mau caráter. Draper reúne um cruzamento de contradições; reservado, muitas vezes entrando em situações insólitas (principalmente em se tratando das relações com as mulheres), aguentando a angústia e muitas vezes a deriva das consequências. Ele carrega um segredo que não compartilha com ninguém, mas que é oferecido ao espectador: Don Draper é o nome, a identidade que assumiu e que pertencia a um soldado, companheiro de armas que morre a seu lado na Guerra da Coréia. Rebatizar-se não é bem solidário ao imaginário de autofundação do self-made man? Ser “outro”, sem os rastros por vezes complicados da tradição? Assim nosso protagonista é o máximo em matéria de sucesso profissional, mas anda no fio da navalha a respeito de seu lugar num mundo cheio de linhas de tensão das mais banais às sofisticadas e invisíveis.

Uma marca para registrar? A cena de abertura, reeditada em cada episódio. Imagem absolutamente condensadora, como em um sonho. Naqueles poucos segundos de excelente projeto gráfico se “diz” do personagem, da ficção, e das questões que ela coloca. A imagem mostra um homem em queda, figura recortada em preto, atravessando seu “habitat” (o do publicitário), indicado em elementos mínimos – um esboço de ventilador, janela, o escritório, uns poucos objetos que vão caindo, tudo se desfazendo. E ele caindo por fora dos prédios que refletem como telas as propagandas. Em câmera lenta seu corpo passa por entre as bocas de batom, as imagens da família americana, um imenso copo de uísque, cores, brilhos, esboços publicitários variados, e é quase aparado pelo movimento despretensioso de uma longa perna feminina.

A homenagem-citação é direta, os prédios que refletem em seus vidros o burburinho de Nova York, acentuando seu “ser de espelho”, em contraste com o anonimato do formigueiro da metrópole na boca do metrô é a abertura do filme de Hitchcock “Intriga Internacional”, de 1959. Cary Grant é ali o publicitário da Mad que é confundido com um espião internacional, e será perseguido por todos os lados.

O pós guerra leva abundância à classe média norte americana, e a publicidade nos anos 50 e 60 entra justo nesta vertente do american dream, acentuando: realizar este sonho tem a ver com saber “o que” você deve buscar, desejar. Assim, a lógica da psicologia da publicidade neste contexto participa em cheio da proposta mesma do sonho americano. O homem alvo dos mad men ( eles mesmos, inclusive), tem mais acesso aos objetos de consumo, mas tudo tem seu preço. Vai se ver também mais perturbado “perseguido” pelos imperativos internos/externos: o que é preciso ‘ter” para portar, no social, os índices do sucesso?

O terreno é instável, quedas, tropeços, perigos também do nosso tempo: Como lidar com os imperativos de gozo no social? Dos bens, de prestígio, de influência? Como constituir nossas vidas, claro, fruindo, dos produtos que ganharam um fascínio em sintonia fina com a era dos mad men, mas em alguma medida sabendo que o feitiço/ fetiche tem natureza de fantasia, e portanto participa do truque, da montagem, da miragem? Vale cada possibilidade: brincar com os gadgets, as imagens, os faces, nossas publicidades contemporâneas e suas configurações, e poder ao mesmo tempo, com a ficção de Mad Men, falar sério com os enigmas que ela aponta.

.oOo.

Vídeos:
Abertura da série Mad Men.
Abertura de “Intriga Internacional”, de Alfred Hitchcock.

Link:
Material na Rolling Stone sobre nova temporada de Mad Men

Livros:
Mad Men. Jerry Della Fiemina, Editora Record, 2011.
O guia não oficial de Mad Men, os reis da Madison Avenue. Jesse McLean, Editora Best Seller, 2011.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora