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17 de abril de 2012
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09:05

A sociedade que temos X A sociedade que queremos

Por
Sul 21
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Por Maria Ângela Bulhões, Psicanalista Membro da APPOA

Há poucos dias atrás, o Superior Tribunal de Justiça(STJ) de São Paulo deu uma sentença favorável à inocência de um réu acusado do estupro de três meninas de doze anos com as quais praticou sexo. O assunto virou polêmica em vários veículos de comunicação, assim como em rodas de conversas . Houve críticas acirradas contra tal decisão, que se baseou no argumento de que as meninas já possuíam vida sexual extensa antes da situação em que ocorreu a acusação.

No centro das discussões esteve a questão: o que pode ser considerado violência numa situação dessas? Os juízes se basearam no fato de que o ato sexual não foi forçado ou violento. Assim, se foi a situação social, cultural e econômica dessas meninas que as levou a tal condição, o réu deixou de ser o acusado para tornar-se ré a complexa realidade brasileira, que ainda não foi modificada.

Neste debate, as idéias de Freud apresentadas em 1929, no seu famoso texto O Mal Estar na Civilização, podem ser úteis.

Nesse texto, Freud, tratando das relações humanas, ressalta o quanto a civilização se deve à coerção dos instintos sexuais e agressivos dos indivíduos. A civilização, segundo ele, surge com a primeira tentativa de regular os relacionamentos sociais. Conforme Freud, o grupo se forma no interesse de produzir a força necessária para sua própria proteção contra a força maior da natureza. Se a tentativa de regulação não existisse, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo mais forte, que agiria em proveito de seus próprios interesses e instintos.

A vida humana em comum só se torna possível quando uma maioria mantém-se unida e torna-se mais forte do que indivíduos isolados. Para isto, os membros da comunidade são obrigados a restringirem-se em suas possibilidades de satisfação dos desejos, ainda que individualmente alguém possa desconhecer tais restrições.

A primeira exigência da civilização, portanto, é a de justiça, ou seja, a garantia de que uma regra, uma vez criada, não será violada em favor de um individuo. O resultado final é um estatuto legal para o qual todos – exceto os incapazes de ingressar numa comunidade – contribuem com o sacrifício de seus instintos, e que não deixa ninguém – novamente com a mesma exceção – à mercê da força bruta.

Freud que, sem dúvida, foi o maior estudioso do comportamento humano, nunca foi ingênuo na percepção do potencial agressivo e egoísta de cada um de nós. Sua ampla reflexão trata dos mecanismos da organização psíquica individual, assim como da organização que nossa sociedade estabeleceu ao longo de seu desenvolvimento. Nesta reflexão, criou o termo superego, para falar da coerção interna que se origina dos controles externos estabelecidos pelos vínculos mais próximos dos indivíduos. São os pais, em primeiro lugar, aqueles que, através da educação, introduzem seus pequenos na sociedade à qual pertencem e exigem, em troca do amor a eles dedicado, a capacidade de sacrifício de parte de seus desejos, para tornar possível o convívio social.

Não é difícil entender, portanto, porque a decisão do STJ/SP produziu tamanha reação. A imagem foi de que o indivíduo inocentado pôde gozar do corpo de crianças e sair impune de tal feito, sendo garantida, mais uma vez, a impunidade dos culpados.

É como se em nossa sociedade atual ficasse difícil punir, já que todos de alguma forma podem estar comprometidos com a culpa do pecado (da injustiça social).Todavia cabe ao STJ posicionar-se baseado na sociedade que queremos ter e exigir que os adultos cumpram sua parte de restrição(ao corpo infantil) que lhes cabe.

Freud nos alertou que desejar pecar queremos todos, mas se cada um não for chamado à responsabilidade pelos seus atos, não poderemos denominar nosso grupo de civilizado.


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