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8 de outubro de 2011
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13:34

O menino no espelho e o homem sem imagem

Por
Sul 21
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Fernando Sabino ganhou destaque nacional com suas crônicas, como O Homem Nu, de 1960, adaptada para o cinema em 1997. Faleceu em 11 de outubro de 2004, um dia antes de completar oitenta e um anos de idade. Foto divulgação
Fernando Sabino ganhou destaque nacional com suas crônicas, como O Homem Nu, de 1960, adaptada para o cinema em 1997. Faleceu em 11 de outubro de 2004, um dia antes de completar oitenta e um anos de idade | Foto: Divulgação

Maurício Brum

Disputa interrompida, o jogador machucado é retirado na maca. Gerson vai confabular com o juiz, gesticula, depois vem correndo até o banco dos reservas onde me encontro, em companhia do treinador e do massagista. Fala qualquer coisa ao ouvido do treinador, me apontando, e este se volta para mim, com ar grave: ‘Você vai ter de entrar, Fernando. Não tem mais ninguém. Você é a nossa última esperança’.

Fernando entrou em campo aos quarenta minutos do segundo tempo. Metido numa camisa do América de Belo Horizonte, surgiu como reserva inesperado na final do Campeonato Mineiro, contra o Atlético. Doze de outubro de 1931 era também o dia do seu aniversário, mas quem aplaudiu após o jogo não sabia – e tinha outra motivação. Antes do apito final, o jovem Fernando Sabino, que não desconfiava um futuro de escritor, viraria herói marcando o gol do título. Dois a um. Ironicamente, exatos oitenta anos depois, América e Atlético se enfrentam outra vez com espírito completamente distinto. Agora não há glória iminente e o prêmio é apenas uma fuga de rebaixamento.

O causo de oito décadas atrás está em “O menino no espelho”, romance de 1982 construído a partir das memórias de infância de Fernando Sabino. Escrito com simplicidade, o livro muitas vezes é confundido com obras infanto-juvenis. O subtítulo é uma pergunta comum do início da vida: “O que você quer ser quando crescer?”. Sabino respondia que queria ser criança e, ao falecer em 2004, teve gravado no seu epitáfio: “Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino”. No livro, talvez a maior expressão escrita desse pensamento, Sabino convida o leitor a recordar as fantasias de meninice sem medo do exagero. E, claro, se justifica no epílogo: além das proezas, também listou “algumas lorotas”.

Lançado em 1982, O Menino no Espelho, da Editora Record, está na 84ª edição.
Lançado em 1982, O Menino no Espelho, da Editora Record, está na 84ª edição

Ainda assim, há algo de realidade no capítulo dedicado ao futebol. Seu irmão Gerson, citado no texto, de fato atuou como goleiro do América por algum tempo, antes de se dedicar ao jornalismo, e naquele ano os americanos venceram mesmo o Atlético nos encontros pelo estadual. Um dos jogos inclusive terminou em dois a um, mas foi em maio, não outubro. Outra licença poética do escritor: o campeonato era por pontos corridos, sem final, e apesar da vantagem no confronto direto, o América acabou vice-campeão, atrás dos atleticanos. O menino Fernando evidentemente nunca foi protagonista da decisão, não apenas porque ela não existiu, mas porque na ocasião tinha somente oito anos.

No entanto, as circunstâncias reais daquela disputa seriam capazes, sozinhas, de render boa literatura. O Galo foi campeão não no clássico, mas numa partida com o Villa Nova, de Nova Lima, pela última rodada da competição. O jogo imediatamente se tornou parte do conjunto de lendas do clube: o Atlético chegou ao intervalo derrotado por três a zero, e ao fim da partida venceu por quatro a três. Na lista dos gols da virada só aparece um nome, o de Mário de Castro, craque do clube na época. Ao lado de Said e Jairo, Mário formou um ataque memorável, apelidado pelos adversários como “Trio Maldito” – que se desfez após aquela tarde em Nova Lima, pela saída do goleador.

Mário de Castro é possivelmente o jogador dono da maior média de gols feitos na história do futebol brasileiro. Com uma carreira curta numa época de poucas partidas, consta que ele teria marcado 195 vezes em exatamente cem atuações oficiais, quase dois festejos por jogo. Em 1930, foi chamado para defender a Seleção Brasileira que disputaria a Copa do Mundo no Uruguai, mas se recusou a viajar para ser reserva do botafoguense Carvalho Leite – o primeiro Mário a negar o selecionado nacional. Talvez não por mera coincidência, Atlético e Botafogo disputaram amistosos após o Mundial, um par de jogos encarados como uma maneira de provar qual dos artilheiros era melhor. Mário marcou cinco vezes. Carvalho Leite, três.

O Atlético Mineiro campeão estadual de 1927. Mário de Castro, o quarto agachado, foi artilheiro da competição com 27 gols em 12 jogos. Foto - arquivo do clube.
O Atlético Mineiro campeão estadual de 1927. Mário de Castro, o quarto agachado, foi artilheiro da competição com 27 gols em 12 jogos | Foto: arquivo do clube

O atleticano convivia com uma peculiar clandestinidade. Nascido de pais abastados na cidade de Formiga, passou a vestir as cores do Atlético às escondidas quando foi para a capital mineira estudar medicina, em 1925. Em dias nos quais o movimento pelo profissionalismo ganhava força no Sul e Sudeste do país, o gosto das elites pelo esporte declinava na mesma proporção em que outros grupos da sociedade se aproximavam dos estádios. Mário foi proibido pela família de disputar as partidas. Mas Formiga fica a quase duzentos quilômetros de Belo Horizonte. Na primeira metade do século XX, parecia ainda mais distante. Lá só chegavam notícias esparsas, atrasadas, e nelas se dizia que o Trio Maldito do Atlético era composto por Said, Jairo e “Orion”.

Somente muito mais tarde foi descoberto o verdadeiro nome por trás do que saía nos jornais. O detalhe não foi ignorado por Fernando Sabino em sua menção ao clássico. O escritor, porém, alterou levemente o pseudônimo, para se encaixar com a ideia do livro. Escreveu Sabino: “O time do Atlético se compunha dos seguintes craques: Kafunga – Nariz, Maurício – Mauro, Brant, Caieira – Chafir, Said, Oiram, Jairo, Cunha. Oiram era o grande centroavante Mário de Castro, cujo pai não admitia que ele fosse jogador de futebol, e por isso figurava com seu primeiro nome de trás para diante”.

O chamado Trio Maldito do Atlético Mineiro - Said, Jairo e Orion, da esquerda para a direita - venceu o estadual em 1926, 1927 e 1931.
O chamado Trio Maldito do Atlético Mineiro - Said, Jairo e Orion, da esquerda para a direita - venceu o estadual em 1926, 1927 e 1931

Oiram e não Orion porque desta forma o atleticano usaria estratégia igual à do escritor. Ao passar por agente secreto em brincadeiras, o menino Fernando adotava o codinome Odnanref – seu próprio nome ao contrário –, acreditando que assim não seria descoberto. Seu reflexo, que do mesmo modo deveria ter a existência escondida (sob pena de voltar para dentro do espelho), seguiria a identificação. Mas no fim das contas Odnanref foi flagrado ao lado de Fernando, e a maravilha de ter uma segunda versão de si desapareceu. Mário também seria eventualmente descoberto pela família e manter a rotina de futebolista se tornou complicado.

Os quatro gols na tarde do título de 1931 precipitaram o fim. Indignada com o desfecho negativo de um jogo que parecia ganho, a torcida do Villa Nova entrou num conflito pioneiro com os apoiadores do Atlético. No pandemônio que se armou, a delegação do Galo teve de suspender as comemorações para fugir da cidade, tiros foram disparados e um torcedor acabou morto. Vendo a formatura próxima e uma carreira economicamente mais promissora do que no incipiente futebol profissional, Mário de Castro sentiu que os riscos eram grandes demais para continuar em campo e abandonou o esporte para montar um consultório. Tinha vinte e seis anos.

No futebol comercializado de hoje, vemos multidões de jogadores muitas vezes medíocres cultivando marcas pessoais, e no entanto incapazes de construir dentro de campo algo que mereça ser contado. Orion não tinha nome. Não tinha nem mesmo imagem – nas fotografias da equipe perfilada, costumava tapar o rosto para não ser identificado. Jogou seis temporadas, ergueu três taças e ainda hoje é o terceiro maior goleador da história do Atlético Mineiro. Como ser menino e não desejar ser como ele, ser melhor que ele, ganhar um jogo dele, como um dia sonhou e pôs no papel Fernando Sabino?

Maurício Brum e Iuri Müller assinam, alternadamente, a coluna Futebol e Literatura todos os finais de semana no Sul21.


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