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16 de abril de 2011
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13:39

Só comer?

Por
Sul 21
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Nikelen Witter*

Este artigo nasceu de uma provocação feita por um post no blog Caminhante Diurno.

A primeira vez que li, eu concordei e achei até poética a sugestão de que nossa obesidade nasce de nosso distanciamento da feitura da comida e, consequentemente, de sua gama de cuidados com os alimentos e com as especialidades do sabor. Certamente que, dizendo isso, o texto não pretendeu desvendar os caminhos da obesidade moderna. Sugeriu, apaixonadamente, uma de suas causas, mas não a única, com certeza. Caso fosse, não teríamos cozinheiras(os) gordas(os).

Embora eu compreenda a ideia, e até concorde em parte, fiquei com vontade de ir um pouco mais além, não para pensar a obesidade, mas nossas relações com a comida. Sendo assim, de forma alguma pretendo meter-me na seara dos nutrólogos, que estudam e detém a autoridade sobre o tema. Manifesto-me como historiadora e glutona, embora não necessariamente nessa ordem.

Num pequeno artigo em meu blog, falei que considero nossa relação com a comida um diálogo, sendo, ela própria, parte do idioma por meio do qual nos expressamos (não é uma ideia minha, o conceito vem da antropologia.). Trata-se, porém, de um diálogo tripartido, pois nós o estabelecemos com o ambiente, com os outros e com nós mesmos.

No diálogo com o ambiente temos a base de nossa civilidade e de nossa identidade enquanto grupo. Afinal, não se trata somente da escolha e do uso dos alimentos que o ambiente nos fornece, mas também da seleção das formas como estes serão preparados. Neste sentido, o cozimento tem um papel especial. A transformação metódica, química e irreversível do alimento sugere uma sofisticação não apenas de paladar, mas de cuidado. Um cuidado estabelecido com o corpo, mas também com o grupo. Uma peculiaridade humana é que o(a) cozinheiro(a) não o faz apenas para si, faz para os outros, para dividir com os outros. Em tal contexto, o trabalho de cocção dos alimentos, na grande maioria das sociedades tribais exercido por mulheres, aponta para a importância destas na constituição da civilização humana. Aliás, um papel duplo, visto que boa parte da coleta era também uma obrigação das mulheres na divisão primitiva do trabalho. Cabia a elas selecionar, no ambiente, parte do que seria ingerido pelo grupo.

É óbvio que ressaltar tal importância não é dizer que isso atrela as mulheres, inevitavelmente à cozinha, e livra os homens dela. Longe disso. Minha raiz evolucionista acredita que as sociedades podem (o que não quer dizer que vão) evoluir. Romper com as divisões primitivas do trabalho é a prova dessa nossa capacidade.

Porém, quando falamos de comida como um diálogo com o ambiente, as mulheres, certamente, foram suas principais intérpretes. Sabe-se de sociedades que não se estabelecem em um novo território sem que a cozinha coletiva seja demarcada pelas mulheres. Em outras, nenhum casal faz uma nova casa, sem que a mulher marque com uma estaca, a partir de que ponto a cozinha deve ser construída. As mulheres trituram os alimentos com os dentes, mastigam-no, o sovam nos braços, nas coxas. Vão muito além do uso das mãos. Nestas sociedades, as mulheres levam o diálogo com o alimento até o fim e são elas, também, parte do que se come.

O segundo diálogo é o que se estabelece com o outro, e não é de admirar que as raízes mitológicas de nossa sociedade apontem, quase sempre, para banquetes. Para momentos em que o alimento é dividido. Afinal, é a partilha do alimento que nos torna semelhantes, que rompe com o belicismo individual e cria uma identificação grupal. Somos essa gente porque comemos tal coisa e de tal maneira. Da mesma forma, não é à toa que estabelecemos tantas restrições a comermos com quem “não nos passa pela garganta”, com quem “não digerimos”. Não se partilha a mesa com o inimigo, não se faz com ele um ritual destinado a comunicar e igualar, um ritual cuja marca maior é o estabelecimento de uma solidariedade mútua.

O último diálogo é o que se estabelece entre o alimento e o próprio corpo. É um diálogo que passa pelo gosto, mas também pelo prazer. E, sim, possivelmente é aí que estamos falhando Porém, não apenas na distância que colocamos entre nós e a feitura dos alimentos. Parte da falha vem da busca pelos prazeres momentâneos nos quais a saciedade passa a ser sinônimo de estar repleto. A massificação nos apressa, as frustrações nos fazem ávidos, a confusão entre comida e carinho nos faz pouco seletivos. Retornamos ao mais primitivo em nós: nosso gosto pré-histórico por gordura, nosso cansaço necessitado de amido, nossa infância moldada no açúcar. Exilamos os outros sabores em troca do imediato e da quantidade.

Olhando para a história do Brasil, vemo-nos herdeiros de uma sociedade que, ao mesmo tempo, foi marcada pela escassez e pela fartura. A primeira foi companheira de nossos antepassados por mais três séculos. A alimentação era confundida com barriga cheia (reclamação dos médicos ainda no século XX). Paçoca de farinha com feijão, e cachaça, para esquecer que a quantidade era pouca. As outras faltas eram cobertas pela rapadura, o açúcar democrático da colônia.

A vinda dos imigrantes no final do século XIX encontra outro mundo. Mesmo com dificuldades, o alimento vem mais fácil que era na colônia e no mundo europeu, isso faz com que se crie uma cultura do “tem de sobrar”. Faz-se comida em quantidades de batalhão e vergonha é se a panela ficar limpa. Por outro lado, se sobra muito, é porque filhos e netos não comeram o bastante. E, ai daquele que comeu uma servida inteira ontem e apenas meia hoje: é uma ofensa pessoal. Esta segunda cultura é presente também nos EUA, onde o paroxismo da ingestão exagerada é levado a extremos; como nos restaurantes que se dispõe a vencer a fome, cada vez maior, dos clientes com porções cada vez mais generosas. Ou ainda, estudos que apontam que, se você colocar mais açúcar no leite, as crianças vão tomar mais leite.

Assim, de todas as razões que nos levam à obesidade, escolho uma para comentar: o tempo. Nenhuma servida deveria ser comida em menos de 20min, nem sem que seu aroma seja apreciado nos 20min que antecedem à refeição. É preciso o tempo de olhar para forma da comida, para a sua cor; e também dar tempo para que a(o) cozinheira(o) faça-se à mesa. São necessários longos segundos para primeira garfada, para fechar os olhos e sentir o aroma pela parte interna do nariz, para fazer o alimento deslizar em cada papila da língua, para reter o sabor primeiro e inigualável na memória, para dizer hummm. Depois, vão se um ou dois minutos de elogio e de carinho por quem colocou as mãos, o tempo e parte da alma no prato que nos alimenta. Então, voltar a comer e a dividir.

É neste prazer esquecido, o do tempo dedicado não apenas à feitura, mas também ao próprio ato de alimentar-se que nosso distanciamento com a comida e, tudo que ela encerra, se torna mais trágico. As horas que vão em cada Big Mac, não são as que ganhamos, mas as que engolimos, não digerimos e, depois, nos colocamos a reclamar que não existiram. A comida da pressa não tem sutileza, não tem tempero. É prazer fácil, imediato e que na memória lembra a textura e a delicadeza de um isopor. A comida da pressa só alimenta os nossos pneus.

Do meu ponto de vista, o tempo que dedicamos a conversar com os alimentos, à cada um dos três diálogos aqui mencionados, é uma afirmação não só de nossa cultura, mas, também, de nossa humanidade.

*Nikelen Witter é professora, historiadora e comilona assumida desde que se entende por gente.


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