Colunas>Marcelo Carneiro da Cunha
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3 de fevereiro de 2011
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21:39

Uma confissão a fazer

Por
Sul 21
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Cá estava eu refletindo sobre coisas de Zeppelin e olhando para as muitas verdades com que os leitores me brindam, dependendo do tema da coluna ou de onde eu a esteja publicando, delicadezas, como –- colunista do PIG, chauvinista, feminista, ateu sem-vergonha, petralha, representante da direita internacional, entre outras. E, nunca falha: “leitor de Veja”. Abordei esse assunto em outro veículo, faço isso de novo aqui, por achar importante clarificar algumas coisinhas com meus inestimáveis leitores.

Eu acredito que escrever e publicar colunas inclui saber o que se está fazendo e onde se está metendo a mão. Quem não estiver disposto a lidar com as consequências, não deve, como diria minha avó Jovita, se estabelecer.

Mas, se me submeto ao resultado de leituras, não é com a mesma aceitação que eu lido com as não-leituras, estimados sulvinteumenses. E um dos fenômenos mais curiosos de nossa época é que, saturados de alternativas de leitura, optamos em muitos casos por aquelas que não nos dizem nada de novo.

Não estamos lendo exatamente para obter ainda mais informação, pensar em novos pontos de vista, ou acrescentar ainda mais solidez para o que já adquirimos ao longo de nossos anos, à sombra de nossa inteligência superior, não. Lemos o que lemos para confirmar o que já pensávamos pra começo de conversa. Talvez por isso a Veja tenha se transformado na fonte de felicidade em que se transformou para os seus milhões de leitores. Talvez por isso faça sentido acusar alguém de ler algo, quando faria muito mais sentido reclamar de quem não lesse coisa alguma fora do seu ambiente de conforto.

O exemplo dos Estados Unidos é interessante: se você olha para a Fox News para o Huffington Post, você está em mundos separados por anos-luz de incompreensão do que o outro queira dizer. Mas essas pessoas são todas cidadãs do mesmo país, caros leitores. Se a discordância acontece nessa ordem de grandeza, se nenhum lado tenta dialogar com o mundo maluco do outro, como sair dessa armadilha? Eliminar alguma classe inteira de opositores não pega bem em democracias contemporâneas, concordam?

No Brasil, leitores de Veja, assim como, por exemplo, leitores da Carta Capital, ou do Conversa Fiada, leem pelos mesmos motivos, mesmo que desde pontos diferentes, ou opostos. Não para se aprofundar no debate sobre o complexo mundo contemporâneo a partir de posições informadas, mas, sim, para poder navegar por essa dura vida com a certeza de estar certo.

Mas esse colunista acredita que não abandonamos a nossa condição de ectoplasma apenas para deslizarmos sobre a Terra colecionando convicções, e acredita que a esquerda tem que ser a força da busca, da honestidade intelectual, da ética e da ciência, por mais que doa o que for descoberto, que uma vez descoberto, deve ser afirmado para que o diálogo concordante e discordante se estabeleça.

Esquerda, para esse colunista, não é modelo econômico, mas consequência de um humanismo profundo e ainda não resolvido. Quando se vive sem buscas, tudo que existe é uma enorme e absoluta certeza, e o que você constrói é um belo islamismo, de pai para filho, desde o século 12.

Na minha infância, meu estimado pai não era um sujeito fácil. Mas — e aqui vai um enorme mas –, naquela casa, em pleno regime militar, se lia livremente, e de tudo. E, uma vez lido, tudo, tudo, podia ser livremente debatido. A condição para o debate era tão simplesmente, a leitura, e nesse embalo eu lembro de ter lido Seleções, bíblias, textos budistas, textos sobre aeronáutica, bula de remédio, textos sobre homeopatia, biogênese, marxismo, liberalismo, existencialismo e a natureza dos duendes. O tempo e a razão aplicados a essas experiências mostram algumas como mais verdadeiras, outras como mais tolas ou mal-sucedidas, e é isso que é apresentado nessa coluna, para a apreciação dos caros leitores, para reflexão, debate e, eventualmente, alguma pancadaria, desde que informada e interessada na troca.

Nesse espírito, e na intimidade que já construímos aqui no Sul 21, permitam que eu confesse que sim, eu leio Veja, convidando os estimados leitores a fazer o mesmo. Assim como acho que devemos fazer outras várias coisas, todas elas tendo em comum uma necessidade, de alguma natureza, de compreender um pouco melhor o que nos cerca, muito em especialmente, o que foi criado para ser, acima de tudo, incompreensível.

* Marcelo Carneiro da Cunha, jornalista e escritor de Antes que o Mundo Acabe, Insônia, Simples e Depois do Sexo, entre outros. Adaptações para o cinema resultaram no curta O Branco, premiado em Berlim, e Antes que o Mundo Acabe, escolhido pela Associação Paulista de Críticos de Artes, como o melhor filme brasileiro de 2010, entre outras premiações. Foi escritor-residente da Ledig House, em Nova York, e autor convidado da Fundação Japão. Leciona criação ficcional na Academia Internacional de Cinema, de São Paulo. Produziu os livros Um Astronauta no Chipre, de Jorge Furtado, e Na Contra-mão da Pré-História, de Tarso Genro. Colunista do Terra Magazine, e Sul 21, publica pelas editoras Projeto, e Record. Porto-alegrense e torcedor do Grêmio, começa a simpatizar com o Corinthians. Vive em São Paulo.

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no twitter, @marceloccunha


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