Colunas>Marcelo Carneiro da Cunha
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31 de janeiro de 2011
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17:12

Mubarak e os muros!

Por
Sul 21
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Estimados Sulvinteumenses, esse que vos escreve se emociona até as lágrimas olhando as imagens do Egito nessa semana. Em um poema de Robert Frost de que eu especialmente gosto, “Mending Walls”, ou “Consertando Muros”, o narrador se pergunta, ao encontrar o vizinho para juntos repararem o muro de pedra que os separa e que foi danificado pelo inverno, sobre a necessidade de eles fazerem aquilo, todos os anos. “Para que estão aqui os muros”, ele se pergunta? “Aqui eu tenho macieiras, e ele pinheiros. Minhas macieiras não vão invadir o meu vizinho. Para que o muro?”. E ele reflete, “Algo há, que não gosta de muros, que os derruba a cada inverno.”

Algo há que não gosta de muros, estimados leitores.

Eu, por exemplo, olhando para o Muro de Berlim, que conheci nos velhos tempos, sentia exatamente a mesma coisa. Aquilo ali era uma ofensa à minha, à sua, à nossa humanidade. E havia muitos que não gostavam daquele muro, como vimos em 1989. Eu perdi a festa por pouco, fui para o Festival de Berlim ver o Ilha das Flores, de Jorge Furtado, ganhar o Urso de Prata, dois meses depois da derrubada. Mas ainda era uma beleza ver os alemães-orientais, décadas de liberdade perdida, ali, se esbaldando por simplesmente poderem.

Aqui no Brasil, infelizmente, enquanto lá derrubavam muros, o Collor montava o ministério dele, e cada anúncio era motivo para susto. Lembro do Jorge, do Giba Assis Brasil, da Ana Luiza Azevedo, cada dia no café da manhã, olhando um para o outro com susto e dizendo “Magri no Ministério do Trabalho?”. Muros, estimados leitores, assumem várias formas.

O Sarney serviu de pedra fundamental no muro que nos separou das Diretas Já, lembram? Eu, estimados sulvinteumenses, não esqueço, nunca esqueci, nunca vou esquecer. Sarney é pau pra toda obra, é pedra.

Algo há que odeia muros, e a Bastilha foi um exemplo essencial desse desejo das pessoas comuns de colocarem a baixo o que as separa dos seus anseios mais básicos de pessoas e cidadãos. Simbolicamente, algo é colocando abaixo quando o povo se liberta, ou um mausoléu é colocado sobre os desejos irrealizados, quando a libertação fracassa, o que, infelizmente, também é sempre um final possível para esses roteiros.

O mundo árabe é marcado por uma sequência infindável de regimes autoritários. Líbia, Argélia, Marrocos, Síria, Iraque, com ditaduras convencionais, Arábia Saudita e vizinhos com as suas monarquias teocráticas, o Irã, persa, não árabe, com a sua terrível teocracia com aiatolás no lugar dos monarcas. A exceção, como a Turquia, precisa do aval contínuo dos militares para que a sua república laica siga funcionando em uma democracia que se mostra duríssima quando o assunto são os curdos, por exemplo. Uma democracia na qual Orhan Pamuk quase foi preso por afirmar o genocídio armênio, logo antes de ganhar o Nobel.

Agora, estimados leitores, essa verdade, digamos, pétrea, é colocada à prova. Na Tunísia, o povo foi lá e derrubou o muro, sem maiores tragédias, e resta a ver agora o que vão colocar no lugar — se os pilares frágeis de uma democracia secular, ou o paredão de um novo regime com a mesma alma do antigo, ou a barreira impenetrável de uma teocracia islâmica.

É esse o medo que mantém o empate técnico no Egito de hoje, que pode se esfacelar a qualquer momento, e para qualquer lado.

O que o povo quer, genericamente, todo mundo entende. Fora com o ditador, fora com a família, o cachorro e o gato do ditador. Eu quero, você quer, sei lá quem pode não querer e continuar sendo um sujeito decente. O problema, é que o Egito fica onde fica, e qualquer coisa que aconteça ali é um estopim para o que vai acontecer no resto do mundo árabe, e muita gente treme só de pensar nisso. Não apenas Israel e Estados Unidos, mas Arábia Saudita, claro, e Irã, obviamente, onde o muro é mantido no lugar à custa de muito sangue e dor.

Ontem, manifestantes falaram o que soou como música para esses ouvidos aqui: “Vamos todos, cristãos, muçulmanos, ateus, fazer o novo Egito!”. Ele não mencionou as mulheres, mas se o espírito for mesmo esse, elas estão incluídas e poderão viver em paz em um sistema generoso e amplo, de uma democracia inclusiva e inédita no mundo de lá.

Essa ainda é a possibilidade menos provável, eu creio. Por que se o ser na rua pode sentir e falar assim, mas quem está ali para ocupar o vácuo da saída do Mubarak são oposições parecidíssimas a ele, e movimentos fundamentalistas, no modelo do Irã. O Egito é, reconhecidamente, o maior construtor de grandes coisas envolvendo pedras da história da humanidade. Como vai se sair realizando o trabalho inverso?

Ouvindo as falas das pessoas nas ruas, como eu ouvi, prefiro ser otimista pela vontade, tal qual Gramsci, e ir em frente, simplesmente, acreditando. Por mim, Mubarak hoje já era, e agora é, e vai ser, o povo, com seu inesgotável sentimento anti-muros. Por hoje, estimados leitores, vamos todos acreditar. E, acreditando, ir em frente.


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