Colunas>Marcelo Carneiro da Cunha
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17 de dezembro de 2010
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22:34

Carta aberta a Marina Silva

Por
Sul 21
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Marina Silva, vi você se despedindo do Senado e lembrei que queria lhe escrever, desde o primeiro turno, quando você e sua turma fundamentalista trouxeram para o cenário brasileiro a escuridão do debate religioso.

É muito duro para um admirador da sua trajetória pessoal ter que lidar com a sua vida desde que você passou a defender coisas como o criacionismo e a repressão aos gays. É difícil ver você junto a expressões do nada, como Silas Malafaia e Wellington Jr. Eles, com aquele ar de quem vende terreno subaquático nas horas vagas, com seus ternos de péssimo corte e gravatas combinando com a alma. Você, bom, com você mesma.

Olhe o que você nos mostrou, enquanto desfilava seu discurso ultraleve, de quem mistura ambientalismo com guaraná e sai por aí a se divertir, numa boa. Primeiro, você defendeu que as escolas evangélicas ensinassem o criacionismo, uma estupidez de natureza extraterrestre, e que deixassem “as crianças escolher”. Sério? E, por acaso, esse ensino ocorreria na aula de religião, onde estudar duendes é natural, ou na aula de ciência, estimada Marina?

Você propôs resolver a questão do aborto em um plebiscito. Sério? Que tal um plebiscito sobre a pena de morte? Lembra do plebiscito sobre as armas? Plebiscitos sobre temas complexos são o que a direita, com suas simplicidades religiosas, mais adora nessa vida, Marina. E ainda assim, é isso que você, como candidata a governante de uma sociedade contemporânea e complexa tem a oferecer?

Mais: quando a feiúra religiosa mais se manifestou, berrando contra a criminalização da homofobia, o que você disse? Disse? E sobre o casamento para todos, o que você disse foi aquela baboseira de que a união civil já basta, e que casamento é para religiosos. Casamento civil não é civil? Essa não é uma sociedade felizmente laica? Então que besteira é essa de casamento ser religioso, e, portanto, um direito vedado aos gays?

E, mais. Que coisa é essa de você vir dizer que “a religião tem muito a oferecer e isso deve ser considerado na política”? Tem o que a oferecer? Os exemplos acima não bastam? Me dê um, um simples exemplo. Qual avanço social importante aconteceu graças à religião, e não sobre os sapateados dela? Você ousa trazer os nobres exemplos de Luther King, Ghandi e Mandela para a mesa. Ghandi? Mandela? Esses enormes seres humanos eram humanos, jamais foram líderes religiosos. Luther King lutou contra a opressão racial, em um cenário onde as seitas evangélicas foram tradicionalmente a favor de massacrar os negros. Usar esses santos nomes na defesa de uma tese sem sentido é uma blasfêmia, Marina. Eu tomo as dores deles e protesto com toda a veemência que eu posso lhe apresentar sem perder alguma parte importante do meu sistema ósseo.

O bloco religioso, formado por evangélicos e católicos de linha dura, ou seja, todos, se apresentou de maneira mais clara nesse final de primeiro turno, e o que se viu não foi nada bonito para quem acredita no avanço social, na igualdade como norma, e não como algo a ser obtido nas barricadas.

Não sei com qual discurso você vem por aí, mas saiba que do lado de cá existem cidadãos que não vão ficar assistindo de braços cruzados enquanto você e os seus usam os números de seu crescimento sobre a base mais pobre e desinformada da população para tentarem impor uma visão de mundo tão fadada ao fracasso que somente resiste em bíblias, corãos e similares. Pode vir, mas venha com a sua real face, com a sua mensagem real, e não com o avatar de mensagem com que fomos brindados na maior parte do tempo, enquanto a pancadaria rolava solta, sem que você assumisse a sua simpatia ou concordância com ela.

Assim como o Serra se negou a afirmar o que pretendia fazer com o pré-sal, você não foi clara quanto a sua real visão de uma sociedade que gostaria de ver reinante no Brasil. Que tal começar agora, já, para que a gente possa debater de verdade, e não de mentirinha? Venha para a frente, e com a sua real face, Marina, e tudo vai ser muito, muito melhor, pode crer. Ou, pelo menos, mais claro, como tudo deve ser.

* Jornalista e escritor


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