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25 de novembro de 2010
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17:57

O panorama espanhol depois da reforma trabalhista e da greve geral

Por
Sul 21
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O panorama espanhol depois da reforma trabalhista e da greve geral
O panorama espanhol depois da reforma trabalhista e da greve geral

Antônio Baylos *

A aprovação pelo Parlamento espanhol da Lei 35/2010 (17 de setembro), denominada de “Medidas Urgentes para o Mercado de Trabalho”, concluiu, formalmente, o processo de modificação do quadro regulador das relações de trabalho, que se iniciou entre maio e junho do corrente ano, depois da ruptura do diálogo social que se centrou no Real Decreto-lei 10 (16 de junho de 2010), convalidado essencialmente pelo texto legislativo acima referido.
É conveniente ressaltar a utilização do procedimento de urgência na tramitação da Lei 35/2010 e a modificação do calendário de sessões do Congresso para viabilizar sua aprovação e promulgação antes da greve geral convocada pelos sindicatos dos trabalhadores para o dia 29 de setembro.

O resultado da votação parlamentar demonstra o isolamento político do governo proponente e do partido político que lhe dá sustentação, eis que o texto legal foi aprovado no Congresso unicamente com os votos do grupo socialista, a abstenção do Partido Nacional Basco – com o qual posteriormente o governo concluiria um acordo de governo que lhe dá estabilidade até 2012 -, e o voto contrário dos demais grupos políticos, da esquerda à direita do leque parlamentar.

A reforma trabalhista é importante porque afeta pontos fundamentais da regulação do trabalho e do emprego. É também uma reforma complexa, pois deixa aspectos importantes abertos à manipulação interpretativa dos operadores jurídicos. Além disso, é uma reforma em processo, pois dilata no tempo a eficácia de algumas de suas prescrições e contém mandatos muito diretos para o desenvolvimento e remodelação de instituições básicas do direito do trabalho.

A importância da reforma vai além do simples enunciado das grandes áreas que abarca. Desde a contratação temporária até a reforma da “demissão objetiva” e das causas da “demissão por motivo econômico”, da redução do custo da indenização pela “demissão objetiva improcedente” e a restrição em paralelo da área da nulidade, da redução da ausência ao trabalho, ou, por fim, da flexibilidade interna e das modificações das condições de trabalho com a ampliação e o reforço dos mecanismos de não-aplicação do convênio coletivo. Em todos esses temas a pressão flexibilizadora do legislador converteu-se em uma verdadeira obsessão que se relaciona diretamente com a obtenção da confiança dos mercados financeiros e de suas instituições reguladoras.

A complexidade da reforma deriva, também, de sua própria amplitude. Já foi referido por vários setores que o conjunto de regras criadas pela Lei 35/2010 é expressão política e ideológica de uma forma neoliberal de conceber as relações sociais e trabalhistas. Sobre esse ponto houve uma ampla intervenção de juristas do trabalho, sindicalistas, sociólogos e economistas que realizaram críticas muito sólidas e profundas em relação à orientação e ao conteúdo da regulação prevista. A Fundação 1º de Maio recolheu essas opiniões – cerca de cinquenta – numa edição especial de sua coleção de estudos, e essa coletânea é muito expressiva do debate ideológico – mas também técnico-jurídico – ocorrido.

A Lei apresenta, ainda, problemas relevantes no âmbito de sua interpretação e aplicação. Bastaria enunciar temas como o da delimitação do conceito de demissão coletiva e dos requisitos procedimentais a serem seguidos nesse caso, ou da demissão por causas objetivas e sua justificação, ou mesmo das faltas ao trabalho como causa de demissão, para entender que estamos frente a preceitos legais que têm grande complexidade técnica. Por outra parte, é imprescindível um trabalho de re-escritura, desde o uso concreto e judicial dos preceitos de numerosas matérias, como a sucessão de contratos temporários, em especial com a Administração Pública, e a estimulação dos contratos temporários através das Empresas de Trabalho Temporário, novamente também nas Administrações Públicas, e de seus limites, ou em todo o campo das modificações substanciais das condições de trabalho.

Há, ainda, aspectos muito polêmicos que podem suscitar problemas de inconstitucionalidade, como o relacionado ao abono de parte da indenização pelo Fundo de Garantia Salarial, ou as incógnitas que apresenta o novo fundo de capitalização para contratos indefinidos, nos moldes do sistema austríaco. A não-aplicação do conteúdo do convênio setorial e suas condições de exercício se situam também em um espaço de regulação que requer intervenções a partir da negociação coletiva e de um bloqueio garantista aos contornos mais claramente anti-sindicais. Muitos desses aspectos, portanto, deverão ser elaborados e formulados a partir de uma política do Direito que submeta o alcance dessas normas a um controle de racionalidade material.

É também uma reforma em processo porque alguns de seus preceitos preveem um desdobramento no tempo, como o aumento da indenização pela finalização dos contratos temporários, ou a entrada em vigor da limitação da sucessão de contratos, mas, antes de tudo, pelos compromissos que se estabelecem na Lei 35/2010 sobre numerosos aspectos. Assim, sem ânimo exaustivo, podemos citar a regulação de um Fundo de capitalização para contratos por prazo indeterminado inspirado no sistema existente da Áustria, a mudança na regulação do seguro-desemprego, e os anúncios mais chamativos de duas reformas chaves na delimitação do sistema de direitos trabalhistas e de suas garantias, a da negociação coletiva e a da Lei de Processo Trabalhista. Este é um terreno de administração e precisão dos conteúdos da reforma que se enriquece adicionalmente com o possível desenvolvimento regulamentar da mesma, e que obrigará, como foi reconhecido pelo novo Ministro do Trabalho, a reabertura de um certo intercâmbio de posições entre sindicatos e empresários com o Poder Público, de resultado incerto. E o resultado é incerto por muitos motivos, desde a evolução dos dados sobre o desemprego e a prevista lenta reativação econômica, até a resolução concreta da crise de direção da CEOE (Confederação Espanhola de Organizações Empresariais). E, mais do que tudo, porque as “medidas para a reforma do mercado de trabalho” originaram um extenso processo de conflito social que não está encerrado.

Com efeito, a reforma trabalhista foi decididamente contestada pelos sindicatos e desencadeou um processo de conflituosidade social que não arrefece, coincidindo com as intensas mobilizações em outros países europeus. A greve geral foi massivamente seguida pelo conjunto dos assalariados da Espanha, com alguma exceção territorial (País Basco, onde os sindicatos nacionalistas não convocaram a greve e a boicotaram) e setorial (em geral na área pública – administração pública, educação e saúde – e hotelaria e comércio), casos em que a participação resultou irregular ou parcial.

As manifestações feitas no momento da decisão pela greve expressaram o imenso apoio dos trabalhadores a essa medida de luta. Embora a análise concreta da participação e do apoio à greve geral deva ser objeto de análise específica, resulta evidente a legitimação e a capacidade de convocação do sindicalismo confederado, qualidades furiosamente combatidas pela direita econômica e política, com o apoio decidido de meios de comunicação que expressam diariamente claras tendências ultradireitistas e reacionárias. Nesse domínio, o da informação e da comunicação, é imprescindível ativar um processo de debate em nosso país, já que a tensão antissindical e discriminatória que domina praticamente a totalidade dos chamados meios de expressão livre é extremamente preocupante e ficou evidente no tratamento da própria greve e nos discursos sobre a sua real eficácia.

Os caminhos da democracia social e os que foram trilhados pelos grupos dirigentes da sociedade espanhola divergem cada vez mais, e progressivamente. A aceitação política de um marco social de referência onde a redução generalizada de salários e das garantias de emprego, junto com a debilitação forçada da dimensão coletiva e sindical do trabalho, é um caminho para melhorar a competitividade da economia, e no qual a proteção social deve reduzir-se e assistencializar-se no melhor dos casos para setores extensos da população, é um modelo que está gerando resistências muito importantes em todos os países europeus, impregnando também a ação de governo e o debate político espanhol. Esse não é um caminho seguro, e requer esforços especiais para obter um certo grau de legitimação ideológica e social. Nessa linha, devem ser interpretadas as mudanças recentes no governo presidido por Rodríguez Zapatero – no qual é explícita essa busca de legitimação adicional à perda de legitimidade de origem eleitoral – e também a crise de direção da organização empresarial espanhola, relativamente à sucessão do tosco e desgastado Díaz Ferrán à frente da CEOE-CEPYME (Confederação Espanhola de Organizações Empresariais e Confederação Espanhola da Pequena e Média Empresa).

CCOO e UGT (Comissões Obreras e União Geral dos Trabalhadores) fizeram da retificação das linhas de tendência presentes na reforma seu objetivo prioritário. Para reverter a lei aprovada, os sindicatos confederados promoverão a ‘Iniciativa Legislativa Popular’ pelo emprego estável e com direitos, já que “o trabalho com direitos é o fundamento do crescimento econômico sustentável”, razão pela qual “a criação de mais e melhor emprego”, “a restituição da causalidade da demissão e da contratação temporária” e o papel conformador da negociação coletiva na regulação das relações de trabalho constituem um “objetivo irrenunciável” para o movimento sindical espanhol.
Nesse contexto, o sindicalismo representado pela UGT e CCOO põe em jogo seu caráter ativo na proposta e garantia dos direitos sociais e laborais no marco de um processo contínuo de transformação da realidade para a melhoria das condições de trabalho e da vida de uma cidadania qualificada por sua posição de subalternidade econômica, social e cultural.

Após a mudança no governo, o poder público está iniciando um processo de contatos sobre aspectos mais periféricos da regulamentação laboral, em especial sobre a delimitação concreta no âmbito territorial e funcional das políticas ativas de emprego. Mas, como se pode compreender facilmente, esse intercâmbio de opiniões não é capaz de desativar o conflito nem a pressão sindical. As mobilizações contra a reforma laboral são acompanhadas com um processo difuso de pressão por negociação dos convênios coletivos que em sua grande maioria não foram renovados este ano, e na reformulação de uma nova jornada de mobilização em torno a manifestações públicas coincidindo com uma nova jornada de luta convocada em nível europeu pela CES (Confederação Européia de Sindicatos). Por isso, a mobilização de 29 de setembro se configura como um momento em que, a partir da situação de conflito aberto contra o projeto de dominação atualmente vigente, pretende fundar um processo de mobilização sustentada que gere uma dinâmica social de rechaço do mesmo através de sua gradual substituição por políticas de trabalho que recuperem e aumentem os direitos laborais e defendam e consolidem o Estado social, como sublinha o ‘documento de alternativas sindicais à política econômica e social do Governo’ que CCOO e UGT divulgaram no dia 27 de outubro desse ano.

O processo de confronto está, portanto, aberto, e a crise está longe de acabar. Tampouco as medidas que foram apresentadas como a única solução aos problemas econômicos gerados pela crise podem ser dadas como seguras. O agravamento cíclico dos problemas financeiros e de endividamento de alguns países da Zona do Euro, como atualmente ocorre com a Irlanda, volta a projetar dificuldades para o sistema econômico e financeiro espanhol. Novas dinâmicas de mobilização em distintos espaços nacional-estatais, como Portugal ou Itália, anunciam-se para finais de novembro. Também o ingresso no jogo do sindicalismo britânico, a partir de dezembro, coincidindo com a mobilização geral convocada pela CES, estende os limites geográficos de um conflito aberto.

É conveniente, assim, seguir atentamente as dinâmicas em curso.

* Professor de Direito do Trabalho e Trabalho Social, na Universidade de Castilla-La Mancha, Espanha


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