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8 de novembro de 2010
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18:11

A Feira do Livro precisa mudar

Por
Sul 21
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Marcelo Carneiro da Cunha *

Voltei a Porto Alegre na migração que coincide com a Feira e os jacarandás, pato sabido que eu sou, para participar de alguns eventos na última sexta-feira, ligados a livros meus e ao filme da Ana Luiza Azevedo, Antes que o Mundo Acabe. E me ficou a sensação, forte, de que precisamos fazer algo urgentemente a respeito da Feira. Eu realmente acredito que as coisas, todas, precisam mudar, mesmo que seja ocupar o mesmo espaço que sempre ocuparam, porque os espaços evoluem, e as pessoas mudam, não é mesmo?

A nossa Feira é algo muito especial na nossa vida,mas a Casa Masson também era, lembram? O footing na rua da Praia era o centro da nossa vida. O Jockey foi absolutamente importante. O bonde era o meio de transporte preferido de todos, pelo menos dos que podiam pagar, creio.

A Feira do Livro de Porto Alegre se diferencia das outras, porque os nossos iluminados livreiros que a criaram, 50 anos atrás, apontaram numa coisa e acertaram noutra. Eles queriam uma Feira de Livros e criaram uma Feira de Gente. Foi ali que se formou o amor pela Feira, para as gerações desde então. Ali nos acostumamos a ver os nossos escritores em carne e osso, a conversar com eles e desmistificar o que em outros lugares segue sendo mito.

Mas, se a Feira do Livro é, na verdade, uma Feira de Gente, ela precisa levar em conta o fator humano, acima de tudo, e gente é um bicho estranho. Eu imagino que mesmo que a gente estivesse diante de uma maravilha absoluta, numa espaçonave chegando em Júpiter e na janelinha, após algumas horas extasiados diante daquilo a gente iria começar a querer outras coisas pra ver, um outro ângulo, uma nova experiência.

Depois de cinquenta anos olhando para a Feira, eu sinto que ela precisa evoluir, se tornar outra coisa, mudar em mais do que o local da área de alimentação. Querem ver? Eu fui e vi crianças pobres, de escolas de áreas difíceis, imagino, andando pra lá e pra cá com uma mascarazinha de papel que devia ser brinde de algum patrocinador. O que aconteceu ali de importante? Elas ganharam um passeio até o centro, andaram pra lá e pra cá e eu olhei e ouvi e não vi nada de relevante acontecendo com elas. Vi a orquestra, bem legal, que se apresenta na praça e sabem o que havia diante dela? Dois bonecos-propaganda de um patrocinador dançando na frente da orquestra. Que vocês acham disso? Parece legal, ou parece mesmo uma quermessezinha daquelas?

Os meus encontros com leitores foram ótimos, mas os melhores aconteceram em uma escola de uma área dura da cidade, onde os alunos fizeram um trabalho comovente sobre a realidade deles, a partir do que viram em um livro meu, de fotografias. Elas saíram para olhar e fotografar e isso fez toda a diferença para quem vive cercado por uma realidade quase incompreensível. Ou seja, a literatura fazendo a sua parte, virando leitura intensa e orgânica, mas fora da Feira. Na Feira tive uma ótima conversa com alunos de escolas que viram o filme e queriam debater com o autor do livro porque também o tinham lido. Isso, sim, é relevante e aponta caminhos.

Eu acho que o modelo de Passo Fundo é vencedor, nesse sentido, na relação com as escolas. Que venham à Feira, mas que todos leiam e se preparem antes, para tudo ser pra valer. Assim, a vinda faz sentido, e quem quiser vir a passeio, com os pais, avós, que venha, como sempre.

E acho que o restante da Feira poderia se dividir em duas partes: na coisa local, dos muitos e muitos autores de Porto Alegre, de ficção e não-ficção, contentes na sua condição de autor, autografando um livro na praça. Isso, por mim, não muda jamais. E, com uma curadoria anual, ou em parceria com as grandes universidades que temos, um grande evento que pense e mostre caminhos sobre o que acontece com a nossa realidade e a nossa narrativa, e não apenas a gaúcha. O Rio Grande é muito maior do que ele mesmo, não é? Que isso seja mais praticado, é o que eu penso.

Eu realmente acho que estamos entre os melhores leitores do Brasil. Somos mais acostumados e críticos. Temos a coisa do debate no sangue. Eu gostaria, simplesmente, que a Feira se tornasse, nesse século 21, o grande catalisador dessa energia, em vez de ser as duas semanas em que montamos barraquinhas na praça e celebramos o nosso passado.

Temos um novo governo, certamente inclinado para a Cultura como nenhum outro. Temos um novo Secretário que é homem dos livros. Temos uma bela tradição, e belos espaços.Temos a Casa de Cultura às traças, louca por uso. Temos o Memorial ali ao lado do Margs, idem. Temos o Banco do Brasil querendo abrir novos CCBB. A Caixa idem. Temos o que precisa, bastando, agora, a vontade. Então, temos tudo que precisa, eu acho.

* Escritor e jornalista


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