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31 de outubro de 2010
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19:14

Obrigado por votar

Por
Sul 21
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Nikelen WitterNikelen Witter *

Toda vez que se aproximam as eleições vem à baila a questão da obrigatoriedade do voto no Brasil. Genericamente, sem muito embasamento, as pessoas costumam se posicionar contra, provavelmente porque qualquer coisa obrigatória soe tremendamente mal em nossos ouvidos, tão apaixonados pela ideia de liberdade.

Os cientistas políticos têm desenvolvido discussões amplas e muito interessantes sobre o assunto, em especial, colocando na balança a obrigatoriedade e a participação política efetiva do eleitorado. No Brasil, a questão porta por estes estudos é: se não fosse obrigado, os brasileiros, em sua maioria, continuariam votando? Qual o impacto disso para a democracia brasileira? Sem querer entrar numa seara de estudos e reflexões que não me pertencem, achei que seria interessante ao menos refletir um pouco sobre a questão.

Inicialmente, é preciso que se diga que o voto compulsório não é uma exclusividade brasileira, outras democracias no mundo utilizam o mesmo expediente. No Brasil, o voto compulsório foi instituído na reforma constitucional de 1932. Seu fundamento estava no fato de que, sendo um Brasil em sua maioria rural, era preciso – como defendeu o deputado gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil – de recursos que garantissem a legitimidade dos governos eleitos no país. Isto é, com o grande número de pessoas vivendo afastadas dos centros, analfabetas de letras e de política, era preciso garantir, se não o princípio da maioria, ao menos a participação maciça de todos os eleitores aptos a votar. A legitimidade e validade da governança institucionalizada pelo voto estavam em jogo e esta foi a forma de consolidá-las. Não preciso dizer que, desde então, mais de uma vez (por conta do Estado Novo e da Ditadura Militar), os brasileiros deixaram de ser obrigados a votar, mas também perderam esse direito.

Os argumentos contra o voto obrigatório, em geral, refutam os dois princípios expostos acima. Primeiro, temos uma sociedade muito mais integrada e urbana, com todas as antigas “minorias” excluídas do voto, agora incluídas nele. Em segundo, já temos uma caminhada como país democrático, o que nos permitiria ser uma democracia livre, onde o voto é uma escolha consciente.

Apesar da validade destas afirmações, tenho alguns argumentos para contrapô-las. Admito que são demasiado românticos, com fundamentos históricos e filosóficos, mas é por causa deles que a questão da obrigatoriedade do voto jamais me pesou.

Sabemos que a democracia, conforme foi criada pelos gregos, era tremendamente exclusivista. Votavam apenas uns poucos que se podiam dizer cidadãos e estes tinham de ter condições de armar-se para defender sua cidade (o que foi se ampliando a partir da redução dos custos dos armamentos com a constituição das chamadas falanges hoplíticas). Ora, se a cidade pede que as famílias entreguem a vida de seus homens pela defesa dela, nada mais justo que os que morrem por ela possam votar para decidir o seu destino. Deste princípio, nasceu o direito ao voto. Mas ele não foi absorvido desta maneira quando da formação das democracias modernas.

Aí, temos um ponto importante: esqueça a ideia de que a democracia se funda com as vitórias do liberalismo nas revoluções burguesas. A democracia nasce nas lutas que se seguem, especialmente, ao fim da Revolução Francesa. A mais emblemática de todas as revoluções liberais focava sua ideia de igualdade num princípio jurídico (todos são iguais perante a lei). Porém, a burguesia vencedora não estava exatamente interessada em uma igualdade política. Como, se perguntava a elite econômica, essa massa de incapazes, sem renda o suficiente para interferir nos destinos do país poderá votar? Voto é para os homens que contam, afirmavam eles. Assim, quando a revolução finalmente naufragou, em 1815, qualquer ideia de voto extensivo à população foi abandonada em nome da segurança das elites ricas e da harmonia que deveria reger as relações sociais.

Contudo, algumas coisas são como o gênio da garrafa: depois que ele sai, é difícil fazê-lo voltar para lá sem que ele cumpra três desejos. E é já na primeira metade do século XIX, que estes desejos se apresentam. As vagas revolucionárias de 1820, 1830 e 1848 levantam a bandeira do sufrágio universal masculino. Todas fracassam. Milhares de homens morrem lutando pelo direito não apenas de eleger seus governantes, mas também de poderem ser votados para defenderem seus interesses nas nações burguesas da Europa. A agitação social é tanta e toma tanto corpo (não se pode esquecer que o Manifesto Comunista, que tanto medo leva às elites, é de 1848) que ao longo da segunda metade do século XIX, o sufrágio universal vai sendo “concedido” pelos governos até então fundamentados no voto censitário. Ressalto: o “concedido” só deve ser lido com as aspas! Foi preciso muito, mas muito sangue, suor e lágrimas para que o voto fosse um direito de todos.

A luta, porém, não acaba aí. Mal se concede o sufrágio universal masculino e as mulheres, que até então tinham uma luta acanhada pelo seu próprio direito, “enlouquecem” e passam a exigir o voto feminino. As lutas sufragistas são igualmente dolorosas: prisões, greves de fome, tortura e até morte, pois essas ativistas acreditavam que valia à pena morrer para que suas concidadãs, suas irmãs de sexo, pudessem votar. No decorrer do século XX, elas conseguiram, ao menos, nos países onde há democracia real. E, por favor, não me venham falar, depois de tudo isso, que o voto foi “dado” às mulheres pelo bom Getúlio.

Mas estes são argumentos que reforçam a qualidade do direito ao voto e não da sua obrigatoriedade, exclamariam alguns. Com certeza. Porém, ainda tenho mais duas afirmações a fazer a este respeito.

A primeira é que a obrigatoriedade reforça a necessidade continuada de nossa educação política. E ainda temos de muito de caminhar nesse sentido. Enquanto nosso direito for também uma obrigação, ao menos, somos obrigados a tentar entender o que está acontecendo na política do país. Sinto dizer, mas não nos acho adultos o suficiente para prescindir disso.

Meu segundo e último argumento é o mais romântico, talvez, por isso, eu goste tanto dele. A obrigatoriedade de votar é também a obrigatoriedade de olhar para o lado. De perceber que vivemos num mundo coletivo, que ser cidadão é ser concidadão, é viver cercado de outros e saber que temos sim muita obrigação com o destino da maioria. O que acontece ao lado, importa. Para mim, essa é a principal lição dos revolucionários e revolucionárias dos dois séculos passados. Em política, somos um sujeito coletivo, não podemos esquecer disso.

Esses são os meus motivos. O porquê da obrigatoriedade não me pesar. Talvez, isso não tenha somado em nada para você e nem de longe o tenha convencido que há razões plausíveis para que o voto continue sendo uma obrigação. Mas, em uma eleição onde esteve presente o ódio de classe, a desqualificação do voto do pobre, o deboche pela escolha da maioria com palavras como “ditabranda”. Bem, numa eleição assim, mesmo que você tenha ido obrigado cumprir o seu direito, como sua concidadã, eu agradeço. Agradeço por ter escolhido um candidato e ter pensado no futuro que é nosso.

Obrigado por votar.

*professora e historiadora


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