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21 de outubro de 2010
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18:48

Eleição para corações duros e carecas moles

Por
Sul 21
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Eleição para corações duros e carecas moles
Eleição para corações duros e carecas moles

Marcelo Carneiro da Cunha *

Minha avó Jovita, forte gaúcha de Lagoa Vermelha e dos bons tempos, me informou durante uma sessão de Nosso Lar que nunca mais tinha se divertido tanto, desde 1964 e da Marcha da Família com Deus e pela Ditadura. Sempre que perguntei a vovó se ela tinha marchado, ela era tão reticente quanto o bravo candidato Serra na hora de falar dos seus reais planos para o Pré-Sal.

Mas, se a minha avó Jovita se diverte com essa eleição, algo não vai bem no reino da Dinamarca aqui ao redor.

Cada eleição serve para se tomar a temperatura do que ferve sob o alcance do radar da nossa percepção e não se mostra a não ser em momentos especiais. Alguém aí sabia que a igreja católica se mantinha tão apegada aos seus métodos desenvolvidos no século 12? Algum de vocês já tinha visto um candidato a vice tão desaparecido quanto o Índio da Costa? Alguma vez tinham visto uma guerra de dossiês invisíveis como essa?

Algum de vocês já tinha notado o grau de articulação de setores evangélicos, e do preço que queriam pelo apoio ao que quer que fosse? Alguém tinha se dado conta de que havia tanta oposição ao desejo de justiça de um PNDH3? Alguém aí sabia que a TFP seguia viva, mesmo que por aparelhos?

Eu não tinha percebido, não tudo isso, ao menos. Recentemente, em viagens à Espanha e Alemanha, meio que influenciado pelo entusiasmo deles conosco, eu me deixei levar e acreditar que estávamos bem, que estávamos ótimos, que nosso desenvolvimento institucional, que a demonstração dada pelo Lula de que era possível fazer tudo ao mesmo tempo, menos duplicar a BR-101, ao menos dentro dentro do período da minha vida útil era a marca do novo Brasil.

Sinceramente, e ingenuamente, me surpreendi ao ver que tanto a direita quanto o tradicional sentimento das classes de cima por todas as outras continuavam lá, firmes.

Vi vendo em São Paulo há alguns anos, vi com muita alegria o meu amado e idolatrado Rio Grande romper com as suas dificuldades para produzir consensos dos últimos bons anos e resolver tudo em um incrível primeiro turno. Oigalê!

E vivendo em São Paulo, já andava meio acostumado ao suave modelo DEM/PSDB de ser, mas mesmo assim, não esperava que a coisa assumisse essa feiúra toda na forma e no conteúdo. Quando o Kassab fecha abrigos para os sem-teto e os lança pelas ruas afora, quando eles resolvem cancelar os corredores de ônibus e apostar nos monotrilhos, quando param de varrer o centro da cidade ou a inundam a cada chuvarada do verão daqui, tão previsíveis quanto as vitórias do meu Gremão nessa fase do Renato Gaúcho, tudo parece mais ou menos normal. A imprensa até registra, mas as forças daqui estão todas ajustadas e funcionam que é uma beleza e lá vamos, por menos de meio por cento, mas vamos, rumo a vinte anos de continuísmo. Agora, trazer o tema explosivo do atraso e da intolerância para o centro de uma campanha, nossa, isso eu não esperava.

Não esperava ver o pessoal ainda mais carola do que a minha santa avó, juro. Não esperava ver todos tão dispostos a abandonar a linha constitucional que rege uma república laica e se mandar para o fundamentalismo cristão – por enquanto, ao menos, até os demais fundamentalistas se organizarem, parece.

Nesse cenário de terra arrasada, como se esperar que os direitos básicos dos gays sejam observados e os avanços necessários construídos? Se eles lutam para preservar o seu direito ao exercício pleno da homofobia – e levam, qual vai ser a próxima exigência?

Uma delas, descobri hoje. Tanto Alckmin como Serra fizeram um acordo para dar benefícios às seitas evangélicas, tais como distribuir dinheiro público para as suas entidades, digamos, filantrópicas.

Separação estado-igreja? O que é um mero detalhe constitucional diante do abraço de um Silas Malafaia? Eu olho para o Malafaia, neo-serrista, e penso: você compraria um carro usado desse sujeito? E ele vai ter dinheiro público para praticar o seu proselitismo, numa boa?

Então, estimados leitores. Numa guerra, dizem, a primeira vítima é a razão. Mas isso não era para ser uma guerra. Era para ser uma eleição, por mais dura e intensa que eleições possam ser, e até devam ser, talvez. Ela para ser o momento de anteposição de duas ou mais visões de processo, de como governar uma sociedade complexa e que se moderniza e insere no mundo como protagonista global.

Virou muito, mas muito menos do que isso. Ficamos com a sensação de que vamos eleger mais por arrepio do que por emoção, ou razão. Medo, estimados leitores, é um péssimo motivo para se escolher isso ou aquilo. E medo foi o elemento-chave trazido para a mesa das escolhas pela direita, sempre ela, sempre a mesma. Por hora, parece que vamos bem, e que o Brasil vai chegar até onde o Rio Grande chegou, demorando apenas mais uns dias para isso acontecer, parece.

Mas o Brasil também chega lá machucado e com os nervos mais expostos, o que, sinceramente, não era preciso.

Que eles vivam com isso, que sejam julgados pelo que escolheram fazer, quando tiveram escolha.

É o que deseja esse colunista, a todos, por hora e até bem depois que a gente parar de contar votos e começar a tocar a vida, que é o que todos esperamos, todos nós, no rumo da segunda década do século, que já está aí, quer a gente saiba, ou não.

* Escritor e jornalista


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