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8 de setembro de 2010
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18:21

Faltou gaúcho na Independência

Por
Sul 21
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José Antonio Severo

Por José Antonio Severo, Jornalista

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Domingo deparei, no aeroporto de Belo Horizonte, com o flamante exemplar do 1822, que Laurentino Gomes lançou oficialmente dois dias depois, em 7 de setembro. Livro belíssimo da Nova Fronteira, lindas e importantes ilustrações. Adiantei-me e comprei; preço salgado (R$ 49,00). Não me decepcionou o tão esperado lançamento, nem como objeto nem como conteúdo. Ali está uma história mais ou menos completa da Independência. Faltou, é notável, a parte do Rio Grande do Sul nesse episódio.

Já no prólogo se vê, num capítulo intitulado O Embaixador, em justa homenagem ao fabuloso historiador e ex-diplomata
Alberto Costa e Silva, que, pela nominata dos consultores, uma vez mais o Sul do Brasil não será contemplado como parte da História do Brasil. Não se vê ali nenhum dos nomes que viviam  abaixo do Trópico de Capricórnio, que passa 40 quilômetros ao Sul de São Paulo.

Mas não se desmerece o trabalho. A favor do livro, como novidade, está incluído o Norte do País, que também ficava de fora da História. Para o público em geral, os acontecimentos daqueles dias, até então, nas histórias oficiais, tanto de esquerda quanto de direita, limitavam os fatos decisivos ao Sudeste e à Bahia. Afora os combates navais e terrestres que culminaram no 2 de julho da Bahia, a Independência era, nessas versões oficiais, um arranjo um tanto maldito entre elites, nacionais e/ou internacionais, sem povo nem ideias. O livro demonstra que isto é um equívoco provocado pela ignorância ou pela má fé.

A inclusão do Norte e Nordeste nas lutas pela independência é muito importante para revelar como foi sangrenta a separação do Brasil do Reino Unido. O povo lutou apaixonadamente, bravamente, morreu muita gente pelas causas, contra ou a favor do príncipe Dom Pedro. Muitas províncias recusaram-se a aderir ao movimento do 7 de setembro e foram enquadradas pelo governo do Rio de Janeiro a ferro e fogo. Ora os resistentes enfrentando a intervenção militar dos brasileiros do centro (geralmente comandados pelo almirante Lorde (Alexander) Cochrane – fundador da Marinha Imperial), ora batendo-se contra tropas portuguesas leais às Cortes de Portugal. Interessante é Laurentino revelar que as tropas metropolitanas estavam sob jurisdição das Cortes (o Congresso) e não do Rei dom João VI, que era um virtual prisioneiro do parlamento em Lisboa. Quando um golpe dissolveu essa câmara, acabou-se a guerra, celebrou-se um acordo de paz e o Brasil foi reconhecido pela antiga metrópole, firmando sua personalidade jurídica na comunidade internacional.

É pena Laurentino não ter se detido nesta parte do país, pois, como ele próprio (e também este autor) se qualifica, é um jornalista, um repórter da História. Teria encontrado boas matérias sobre o segundo semestre de 1822 no Rio Grande do Sul e na vizinha Cisplatina. Valem, porém, as descrições dos combates do Norte, como a desconhecida Batalha de Jenipapo, no Piauí, uma surpresa até mesmo para muita gente bem lida e informada. É impressionante como um episódio tão maravilhoso pode ficar esquecido durante quase 200 anos.

Ele fica devendo o episódio sulino, que no seu livro aparece fragmentado e superficial ao processo. Seguindo a tradição da historiografia tradicional, o autor considera como nossa parte da guerra da independência apenas o cerco de Montevidéu pelo marechal Frederico Lecor. Equivocadamente, ele não junta a Guerra da Cisplatina ao processo de resistência das antigas possessões portuguesas à hegemonia do Rio de Janeiro. Assim como Pernambuco, com sua Confederação do Equador, também o Uruguai não se submeteu ao Rio de Janeiro. A província Cisplatina, depois da derrota de Artigas, acomodou-se e  vivia em paz dentro do Reino Unido. Os uruguaios acolheram e protegeram as tropas metropolitanas portuguesas o quanto puderam. Eles não cruzavam bem era com a ocupação rio-grandense. Quanto aos lusitanos, integraram unidades militares coloniais e seus grandes líderes, como Rivera, Lavalleja, Oribe e outros oficiais superiores do Exército Português. Assim que Portugal entregou a possessão aos brasileiros, cumprindo os acordos de Londres, os uruguaios levantaram-se em armas. Sustentaram uma longa guerra. Primeiro, aliando-se aos portenhos, expulsaram os brasileiros; depois com apoio do Brasil, botaram os argentinos para fora, numa guerra que só foi terminar com a queda de Juan Manuel Rosas, de Buenos Aires, 30 anos depois. A parte que nos toca das guerras da independência uruguaia é, sim senhor, uma fração importante e a mais longa do processo de separação das antigas colônias portuguesas na América da metrópole europeia.

Considerando apenas o drama político do fundador do Brasil, também se pode garantir que a queda do primeiro imperador se deu por causa da derrota política na Cisplatina. Nenhum governo resiste a uma amputação territorial como Dom Pedro teve de engolir. Esse fato custou-lhe a coroa brasileira. Na Argentina ainda foi pior, pois a independência do Uruguai custou não só a presidência de Bernardino Rivadávia, como o esfacelamento de sua precária integridade nacional. A perda do Uruguai adiou por 35 anos a sua unidade política. Rivadávia esboçava uma república unitária sob liderança de Buenos Aires. Conseguiu formar um exército nacional para invadir o Brasil, mas foi colhido pelo fracasso de sua intervenção na Banda Oriental. Lamentavelmente, essa parte ficou de fora de 1822 e o Brasil vai ficar ainda algum tempo sem saber das vicissitudes dos irmãos gaúchos nos acontecimentos fundadores da nacionalidade. Continuaremos figurando como os irrequietos e belicosos voluntários que se batiam cegamente contra os vizinhos nas planícies pampeanas.

Fora esse pequeno reparo, devo dizer que o livro é maravilhoso, mais pelo seu efeito sobre a sociedade brasileira do que qualquer outra virtude, embora seja muito bem escrito e com grande valor literário. Mesmo com tamanho virtuosismo, sua oportunidade e seu conteúdo intrínseco ainda superam o talento do autor. Nunca antes a história deste país despertou tamanho interesse. 1822 é um trabalho que ajuda a entender que país é este. Sem carregar nas tintas, tanto pelos defeitos como pelas qualidades do povo que aqui viveu naqueles tempos, a obra contribui para explicar como se chegou a essa nação que hoje temos e desfrutamos, com todo esse território e uma unidade política e cultural efetiva.

1822 não é tão surpreendente quanto foi 1808, a obra anterior de Laurentino, porque mexe num espaço mais visitado pela historiografia brasileira. Naquele outro livro, ele falava do período do Reunido Unido de Portugal, Brasil e Algarves, um tempo que fora inteiramente banido das histórias oficiais que se seguiram, fixando soterrada como as velhas cidades da antiguidade, até que “arqueólogos” como Laurentino fossem lá escavar a levantar um período decisivo da vida deste país. Como é natural na literatura, o sucesso do livro anterior, somado ao fato de que quase ninguém no Brasil sabe de fato o que ocorreu naquele sete de setembro, além das caricaturas correntes, 1822 deverá ter uma brilhante carreira. Espere para vê-lo em todas as listas de mais vendidos.


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