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8 de junho de 2010
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19:34

Cuba, problema difícil para a esquerda?

Por
Sul 21
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Por Boaventura de Souza Santos

Por que Cuba se transformou em problema difícil para a esquerda?

Esta pergunta pode parecer estranha e muitos pensarão que a formulação inversa talvez fizesse mais sentido: por que é que a esquerda se transformou num problema difícil para Cuba? De facto, o lugar da revolução cubana no pensamento e na prática de esquerda ao longo do século XX é incontornável. E é-o tanto mais quanto o enfoque incidir menos na sociedade cubana, em si mesma, e mais no contributo de Cuba para as relações entre os povos, tantas foram as demonstrações de solidariedade internacionalista dadas pela revolução cubana nos últimos cinquenta anos. É possível que a Europa e a América do Norte fossem hoje o que são sem a revolução cubana, mas já o mesmo se não pode dizer da América Latina, da África e da Ásia, ou seja, das regiões do planeta onde vive cerca de 85% da população mundial. A solidariedade internacionalista protagonizada por Cuba estendeu-se, ao longo de cinco décadas, pelos mais diversos domínios: político, militar,  social e humanitário.

O que é “esquerda” e o que é “problema difícil”?

Apesar de tudo, penso que a pergunta a que procuro responder neste texto faz sentido. Mas antes de tentar uma resposta, são necessárias várias precisões. Em primeiro lugar, a pergunta pode sugerir que foi apenas Cuba que evoluiu e se tornou problemática ao longo dos últimos cinquenta anos e que, pelo contrário, a esquerda que a interpela hoje é a mesma de há cinquenta anos. Nada mais falso. Tanto Cuba como a esquerda evoluíram muito neste meio século e são os desencontros das suas respectivas evoluções que criam o problema difícil. Se é verdade que Cuba procurou activamente mudar o cenário internacional de modo a tornar mais justas as relações entre os povos, não é menos verdade que os condicionamentos externos hostis em que a revolução cubana foi forçada a evoluir impediram que o potencial de renovação da esquerda que a revolução detinha em 1959 se realizasse plenamente. Tal facto fez com que a esquerda mundial se renovasse nos últimos cinquenta anos, não com base no legado da Revolução Cubana, mas a partir de outros referentes. A solidariedade internacional cubana manteve assim uma vitalidade muito superior à solução interna cubana.

Em segundo lugar, devo precisar o que entendo por “esquerda” e por “problema difícil”. Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações económicas, sociais, políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efectivo exercício da liberdade. A essa sociedade alternativa foi dado o nome genérico de socialismo. Defendo que para esta esquerda, cuja teoria e prática evoluiu muito nos últimos cinquenta anos, Cuba é hoje um “problema difícil”. Para a esquerda que eliminou do seu horizonte o socialismo ou o pós-capitalismo, Cuba não é sequer um problema. É um caso perdido. Dessa outra esquerda não me ocupo aqui.

Por “problema difícil” entendo o problema que se posiciona numa alternativa a duas posições polares a respeito do que questiona, neste caso, Cuba. As duas posições rejeitadas pela ideia do problema difícil são: Cuba é uma solução sem problemas; Cuba é um problema sem solução. Declarar Cuba um “problema difícil” para a esquerda significa aceitar três ideias: 1) nas presentes condições internas, Cuba deixou de ser uma solução viável de esquerda; 2) os problemas que enfrenta, não sendo insuperáveis, são de difícil solução; 3) se os problemas forem resolvidos nos termos de um horizonte socialista, Cuba poderá voltar a ser um motor de renovação da esquerda, mas será então uma Cuba diferente, construindo um socialismo diferente do que fracassou no século XX, e, desse modo, contribuindo para a urgente renovação da esquerda. Se não se renovar, a esquerda nunca entrará no século XXI.

A resistência e a alternativa

Feitas estas precisões, o “problema difícil” pode formular-se do seguinte modo: Todos os processos revolucionários modernos são processos de ruptura que assentam em dois pilares: a resistência e a alternativa. O equilíbrio entre eles é fundamental para eliminar o velho até onde é necessário e fazer florescer o novo até onde é possível. Devido às hostis condições externas em que o processo revolucionário cubano evoluiu – o embargo ilegal por parte dos EUA, a forçada solução soviética nos anos setenta, e o drástico ajustamento produzido pelo fim da URSS nos anos noventa – esse equilíbrio não foi possível. A resistência acabou por se sobrepor à alternativa. E, de tal modo, que a alternativa não se pôde expressar segundo a sua lógica própria (afirmação do novo) e, pelo contrário, submeteu-se à lógica da resistência (a negação do velho).

Deste facto resultou que a alternativa ficou sempre refém de uma norma que lhe era estranha. Isto é, nunca se transformou numa verdadeira solução nova, consolidada, criadora de uma nova hegemonia e, por isso, capaz de desenvolvimento endógeno segundo uma lógica interna de renovação (novas alternativas dentro da alternativa). Em consequência, as rupturas com os passados sucessivos da revolução foram sempre menos endógenas que a ruptura com o passado pré-revolucionário. O carácter endógeno desta última ruptura passou a justificar a ausência de rupturas endógenas com os passados mais recentes, mesmo quando consabidamente problemáticos.

Devido a este relativo desequilíbrio entre resistência e alternativa, a alternativa esteve sempre à beira de estagnar e a sua estagnação pôde ser sempre disfarçada pela continuada e nobre vitalidade da resistência. Esta dominância da resistência acabou por lhe conferir um “excesso de diagnóstico”: as necessidades da resistência puderam ser invocadas para diagnosticar a impossibilidade da alternativa. Mesmo quando factualmente errada, tal invocação foi sempre credível.

O carisma revolucionário e o sistema reformista

O segundo vector do “problema difícil” consiste no modo especificamente cubano como se desenrolou a tensão entre revolução e reforma. Em qualquer processo revolucionário, o primeiro acto dos revolucionários depois do êxito da revolução é evitar que haja mais revoluções. Com esse acto começa o reformismo dentro da revolução. Reside aqui a grande cumplicidade – tão invisível quanto decisiva – entre revolução e reformismo. No melhor dos casos, essa complementaridade é conseguida por uma dualidade – sempre mais aparente que real – entre o carisma do líder, que mantém viva a permanência da revolução, e o sistema político revolucionário, que vai assegurando a reprodução do reformismo. O líder carismático vê o sistema como um confinamento que lhe limita o impulso revolucionário e, nessa base, pressiona-o à mudança, enquanto o sistema vê o líder como um fermento de caos que torna provisórias todas as verdades burocráticas. Esta dualidade criativa foi durante alguns anos uma das características da Revolução Cubana.

Com o tempo, porém, a complementaridade virtuosa tende a transformar-se em bloqueio recíproco. Para o líder carismático, o sistema, que começa por ser uma limitação que lhe é exterior, passa com o tempo a ser a sua segunda natureza e, com isso, passa a ser difícil distinguir entre as limitações criadas pelo sistema e as limitações do próprio líder. O sistema, por sua vez, sabe que o êxito do reformismo acabará por corroer o carisma do líder e auto-limita-se para que tal não ocorra. A complementaridade transforma-se num jogo de auto-limitações recíprocas. O risco é que, em vez de desenvolvimentos complementares, ocorram estagnações paralelas.

A relação entre carisma e sistema tende a ser instável ao longo do tempo e isso é particularmente assim em momentos de transição.1 O carisma, em si mesmo, não admite transições. Nenhum líder carismático tem um sucessor carismático. A transição só pode ocorrer na medida em que o sistema toma o lugar do carisma. Mas, para que tal suceda, é preciso que o sistema seja suficientemente reformista para lidar com fontes de caos muito diferentes das que emergiam do líder. A situação é dilemática sempre e quando a força do líder carismático tenha objectivamente bloqueado o potencial reformista do sistema. Este vector do “problema difícil” pode resumir-se assim: o futuro socialista de Cuba depende da força reformista do sistema revolucionário; no entanto, tal força é uma incógnita para um sistema que sempre fez defender a sua força da força do líder carismático. Este vector da dificuldade do problema explica o discurso de Fidel na Universidade de Havana em 17 de Novembro de 2005.2

1 Aurelio Alonso distingue dois processos de transição em curso: um deles diz respeito ao sentido da dinâmica de transformações no seio de “uma grande transição iniciada há quase meio século”; o outro diz respeito ao peso da subjectividade: a questão relativa à marca que ficará de Fidel no imaginário dos cubanos que lhe sobrevivam (Continuidad y Transinción: Cuba en el 2007”, Le Monde diplomatique, edición colombiana, Abril de 2007, Bogotá).

2 Nas palavras lapidares de Fidel: “Este país pode destruir-se a si próprio; esta Revolução pode destruir-se, mas ninguém mais a pode destruir; nós, sim, nós podemos destruí-la, e seria culpa nossa”. Comentando o discurso de Fidel, pergunta-se Aurelio Alonso: “Que admira que a preocupação primeira de Fidel gire à volta da reversibilidade do nosso próprio processo?” A resposta que dá Alonso é acutilante: “Fidel estima que a Revolução não pode ser destruída a partir do exterior, mas que pode destruir-se a si própria, apontando a corrupção como o mal que pode provocar a sua destruição. Entendo que esta avaliação está correcta, mas acho que Fidel não disse tudo. Pergunto-me, de resto, se o derrube do sistema soviético foi essencialmente uma consequência da corrupção, mesmo fazendo a corrupção parte da estrutura dos desvios. Em meu entender, a burocracia e a falta de democracia, a par da corrupção, podem fazer reverter o socialismo. Não falo de sistemas eleitorais, de confrontos pluripartidários, de lutas de campanha, de alternâncias no poder. Falo de democracia, da que não temos sido capazes de criar à face da terra, se bem que todos pensemos saber o que ela é. (“Una mirada rápida al debate sobre el futuro de Cuba”, La Jiribilla, 17 de Maio de 2006).

As duas vertentes do “problema difícil” – desequilíbrio entre resistência e alternativa e entre carisma e sistema – estão intimamente relacionadas. A prevalência da resistência sobre a alternativa foi simultaneamente o produto e o produtor da prevalência do carisma sobre o sistema.

Que fazer?

A discussão precedente mostra que Cuba é um “problema difícil” para aquela esquerda que, sem abandonar o horizonte do pós-capitalismo ou socialismo, evoluiu muito nos últimos cinquenta anos. Das linhas principais dessa evolução o povo cubano poderá retirar a solução do problema apesar da dificuldade deste. Ou seja, a revolução cubana, que tanto contribuiu para a renovação da esquerda sobretudo na primeira década, poderá agora beneficiar da renovação da esquerda que ocorreu desde então. E, ao fazê-lo, voltará dialecticamente a assumir um papel activo na renovação da esquerda. Resolver o problema difícil implica, assim, concretizar com êxito o seguinte movimento dialéctico: renovar Cuba renovando a esquerda; renovar a esquerda renovando Cuba.

Principais caminhos de renovação da esquerda socialista nos últimos cinquenta anos

1 – Nos últimos cinquenta anos agravou-se uma disjunção entre teoria de esquerda e prática de esquerda, com consequências muito específicas para o marxismo. É que enquanto a teoria de esquerda crítica (de que o marxismo é herdeiro) foi desenvolvida a partir de meados do século XIX em cinco países do Norte global (Alemanha, Inglaterra, Itália, França e EUA), e tendo em vista particularmente as realidades das sociedades dos países capitalistas desenvolvidos, a verdade é que as práticas de esquerda mais criativas ocorreram no Sul global e foram protagonizadas por classes ou grupos sociais “invisíveis”, ou semi-invisíveis, para a teoria crítica e até mesmo para o marxismo, tais como povos colonizados, povos indígenas, camponeses, mulheres, afro-descendentes, etc.3 Criou-se assim uma disjunção entre teoria e prática que domina a nossa condição teórico-política de hoje: uma teoria semi-cega correndoparalela a uma prática semi-invisível.4

3 Aliás, a criatividade teórica inicial da revolução cubana reside neste facto. Os drásticos condicionamentos externos a que a revolução foi sujeita acabaram por confiscar parte dessa criatividade. Por essa razão, Cuba foi forçada a acolher-se a uma concepção de marxismo subsidiária da realidade do bloco soviético, uma realidade pouco semelhante à cubana. No Congresso Internacional sobre “A Obra de Karl Marx e os Desafios do século XXI”, realizada em Havana a 3 de Maio de 2006, Ricardo Alarcón de Quesada afirmou “A conversão da experiência soviética num paradigma para aqueles que, em outros lugares, travavam as suas próprias batalhas anticapitalistas, e o imperativo de a defender contra poderosos e inflamados inimigos, resultou na subordinação de uma grande parte do movimento revolucionário às políticas e interesses da USSR” (in Nature Society, and Thought, vol 19 [2006]: 20). Neste contexto, é particularmente notável e será sempre motivo de orgulho para o povo cubano a decisão soberana de Cuba de ajudar Angola na sua luta pela independência. O impulso internacionalista sobrepôs-se aos interesses geoestratégicos da União Soviética.

4 No caso do marxismo, houve muita criatividade para adaptar a teoria a realidades não europeias que não haviam sido sistematicamente analisadas por Marx. Recorde-se apenas, no que à América Latina diz respeito, o nome de Mariegueti. No entanto, durante muito tempo as ortodoxias políticas não permitiram transformar essa criatividade em acção política. Com efeito, os autores mais criativos foram perseguidos (como foi o caso de Mariegueti, acusado de populismo e romantismo, uma acusação gravíssima nos anos trinta) Hoje, a situação é muito diferente, como demonstra o facto de outro grande renovador do pensamento marxista na América Latina, Alvaro Garcia Linera, ser Vice-presidente de Bolívia.

Uma teoria semi-cega não sabe comandar e umaprática semi-invisível não sabe valorizar-se. À medida que a teoria foi perdendo na prática o seu papel de vanguarda – já que muito do que ia ocorrendo lhe escapava completamente 5 – paulatinamente foi abandonando o estatuto de teoria de vanguarda e ganhando um estatuto completamente novo e inconcebível

na tradição nortecêntrica da esquerda: o estatuto de uma teoria de retaguarda. De acordo com o sentido que lhe atribuo, a teoria da retaguarda significa duas coisas. Por um lado, é uma teoria que não dá orientação com base em princípios gerais, ou seja, leis gerais por que supostamente se rege a totalidade histórica, mas antes com base numa análise constante, crítica e aberta das práticas de transformação social. Deste modo, a teoria de retaguarda deixa-se surpreender pelas práticas de transformação progressistas, acompanha-as, analisa-as, procura enriquecer-se com elas, e busca nelas os critérios de aprofundamento e de generalização das lutas sociais mais progressistas. Por outro lado, uma teoria de retaguarda observa nessas práticas transformadoras tanto os processos e actores colectivos mais avançados, como os mais atrasados, mais tímidos e porventura prestes a desistir. Como diria o Sub-Comandante Marcos, trata-se de uma teoria que acompanha aqueles que vão mais devagar, uma teoria que concebe os avanços e os recuos, os da frente e os de trás, como parte de um processo dialéctico novo que não pressupõe a ideia de totalidade, antes postula a ideia de diferentes processos de totalização, sempre inacabados e sempre em concorrência. De acordo com a lição de Gramsci, é este o caminho para criar uma contra-hegemonia socialista ou, como no caso cubano, para manter e reforçar uma hegemonia socialista.

Apenas para me limitar a um exemplo, os grandes invisíveis ou esquecidos da teoria crítica moderna, os povos indígenas da América Latina — ou, quando muito, visíveis enquanto camponeses — têm sido um dos grandes protagonistas das lutas progressistas das últimas décadas no continente. Da perspectiva da teoria convencional da vanguarda, toda estainovação política e social teria interesse marginal, quando não irrelevante, perdendo-se assim a oportunidade de aprender com as suas lutas, com as suas concepções de economia e de bem-estar (o suma kawsay dos Quechuas ou suma qamaña dos Aymaras, o bom viver), hoje consignadas nas Constituições do Equador e da Bolívia, com as suas concepções de formas múltiplas de governo e de democracia – democracia representativa, participativa e comunitária, como está estabelecido na nova Constituição da Bolívia. A incapacidade de aprender com os novos agentes de transformação acaba por redundar na irrelevância da própria teoria.

2 – O fim da teoria de vanguarda marca o fim de toda a organização política que assentava nela, nomeadamente o partido de vanguarda. Hoje, os partidos moldados pela ideia da teoria da vanguarda não são nem de vanguarda, nem de retaguarda (como a defini acima).

São, de facto, partidos burocráticos que, estando na oposição, resistem vigorosamente ao status quo, não tendo contudo alternativa; e, estando no poder, resistem vigorosamente a

5 Ou seja, a supremacia da inteligência e da audácia política sobre a disciplina, que foi a marca da vanguarda, acabou sendo convertida no seu contrário: a supremacia da disciplina sobre a inteligência e a audácia como meio de ocultar ou controlar a novidade dos processos de transformação social não previstos pela teoria.

propostas de alternativas. Em substituição do partido de vanguarda há que criar um ou mais partidos de retaguarda que acompanhem o fermento de activismo social que se gera quando os resultados da participação popular democrática são transparentes, mesmo para os que ainda não participam e assim são seduzidos a participar.

3 – A outra grande inovação dos últimos cinquenta anos foi o modo como a esquerda e o movimento popular se apropriaram das concepções hegemónicas (liberais, capitalistas) de democracia e as transformaram em concepções contra-hegemónicas, participativas,deliberativas, comunitárias, radicais. Podemos resumir esta inovação afirmando que a esquerda decidiu finalmente levar a democracia a sério (o que a burguesia nunca fez, como bem notou Marx). Levar a democracia a sério significa não só levá-la muito para além dos limites da democracia liberal, mas também criar um conceito de democracia de tipo novo: a democracia como todo o processo de transformação de relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada. Mesmo quando não anda associada à fraude, ao papel decisivo do dinheiro nas campanhas eleitorais ou à manipulação da opinião pública através do controlo dos meios de comunicação social, a democracia liberal é de baixa intensidade uma vez que se limita a criar uma ilha de relações democráticas num arquipélago de despotismos (económicos, sociais, raciais, sexuais, religiosos) que controlam efectivamente a vida dos cidadãos e das comunidades. A democracia tem de existir, muito para além do sistema político, no sistema económico, nas relações familiares, raciais, sexuais, regionais, religiosas, de vizinhança, comunitárias. Socialismo é democracia sem fim.

Daqui decorre que a igualdade tem muitas dimensões e só pode ser plenamente realizada se a par da igualdade se lutar pelo reconhecimento das diferenças, ou seja, pela transformação das diferenças desiguais (que criam hierarquias sociais) em diferenças iguais (que celebram a diversidade social como forma de eliminar as hierarquias).

4 – Nas sociedades capitalistas são muitos os sistemas de relações desiguais de poder (opressão, dominação e exploração, racismo, sexismo, homofobia, xenofobia). Democratizar significa transformar relações desiguais de poder em relações de autoridade partilhada. As relações desiguais de poder actuam sempre em rede e, por isso, raramente um cidadão, classe ou grupo é vítima de uma delas apenas. Do mesmo modo, a luta contra elas tem de ser em rede, assente em amplas alianças onde não é possível identificar um sujeito histórico privilegiado, homogéneo, definido a priori em termos de classe social. Daí a necessidade do pluralismo político e organizativo no marco dos limites constitucionais sufragados democraticamente pelo povo soberano. Na sociedade cubana as relações desiguais de poder são diferentes das que existem nas sociedades capitalistas mas existem (mesmo que sejam menos intensas), são igualmente múltiplas e igualmente actuam em rede. A luta contra elas, feitas as devidas adaptações, tem igualmente que pautar-se pelo pluralismo social, político e organizativo.

5 – As novas concepções de democracia e de diversidade social cultural e política enquanto pilares da construção de um socialismo viável e auto-sustentado exigem que se repense radicalmente a centralidade monolítica do Estado, bem como a suposta homogeneidade da sociedade civil.6

6 Para uma apreciação muito lúcida da sociedade civil em Cuba, veja-se a entrevista de Aurelio Alonso na revista Enfoques, nº 23, Dezembro, 2008: “Sociedad Civil en Cuba: un problema de geometría? Entrevista con El sociólogo cubano Aurelio Alonso”.

Possíveis pontos de partida para uma discussão sem outro objectivo que não o de contribuir para um futuro socialista viável em Cuba:

1 – Cuba é talvez o único país do mundo onde os condicionamentos externos não são um álibi para a incompetência ou corrupção dos líderes. São um facto cruel e decisivo. Isto não implica que não haja capacidade de manobra, aliás, possivelmente ampliada em função da crise do neoliberalismo e das mudanças geoestratégicas previsíveis no curto prazo. Este capital não pode ser desperdiçado através da recusa de analisar alternativas, ainda que disfarçadas por falsos heroísmos ou protagonismos da resistência. A partir de agora, não pode correr-se o risco de a resistência dominar a alternativa. Se tal suceder, nem sequer haverá resistência.

2 – O regime cubano levou ao limite a tensão possível entre legitimação ideológica e condições materiais de vida. Daqui em diante, as mudanças que contam são as que mudam as condições materiais de vida da esmagadora maioria da população. A partir daqui, a democracia de ratificação, a continuar a existir, só ratifica o ideológico na medida em que este tenha tradução material. Caso contrário, a ratificação não significa consentimento. Significa resignação.

3 – A temporalidade de largo prazo da mudança civilizacional estará por algum tempo subordinada à temporalidade imediata das soluções urgentes.

4 – Uma sociedade é capitalista não porque todas as relações económicas e sociais sejam capitalistas, mas porque estas determinam o funcionamento de todas as outras relações económicas e sociais existentes na sociedade. Inversamente uma sociedade socialista não é socialista porque todas as relações sociais e económicas sejam socialistas, mas porque estas determinam o funcionamento de todas as outras relações existentes na sociedade. Neste momento em Cuba há uma situação sui generis: por um lado, um socialismo formalmente monolítico que não encoraja a emergência de relações não capitalistas de tipo novo, nem pode determinar criativamente as relações capitalistas, ainda que por vezes conviva com elas confortavelmente e até ao limite da corrupção oportunamente denunciada por Fidel; por outro, um capitalismo que, por ser selvagem e clandestino ou semi-clandestino, é difícil de controlar. Nesta situação, não é propício o terreno para o desenvolvimento de outras relações económicas e sociais de tipo cooperativo e comunitário, de que há muito a esperar. Neste domínio, o povo cubano deverá ler e discutir com muita atenção os sistemas econômicos consignados na constituição da Venezuela e nas Constituições do Equador e da Bolívia, recentemente aprovadas, bem como as respectivas experiências de transformação. Não se trata de copiar soluções, mas antes de apreciar os caminhos da criatividade da esquerda latino-americana nas últimas décadas. A importância desta aprendizagem está implícita no reconhecimento de erros passado, manifestado de forma contundente por Fidel no discurso da Universidade de Havana, já mencionado: “Uma conclusão a que cheguei ao cabo de muito anos: entre os muitos erros que todos cometemos, o mais importante foi acreditar que alguém sabia de socialismo, ou que alguém sabia como se constrói o socialismo”.

5 – Do ponto de vista dos cidadãos, a diferença entre um socialismo ineficaz e um capitalismo injusto pode ser menor do que parece. Uma relação de dominação (assente num poder político desigual) pode ter no quotidiano das pessoas consequências estranhamente semelhantes às de uma relação de exploração (assente na extracção da mais valia).

Um vasto e excitante campo de experimentação social e política a partir do qual Cuba pode voltar a contribuir para a renovação da esquerda mundial:

1 – Democratizar a democracia. Contra os teóricos liberais – para quem a democracia é a condição de tudo o resto – tenho vindo a defender que há condições para que a democracia seja praticada genuinamente. Atrevo-me a dizer que Cuba poderá ser a excepção à regra que defendo: acho que em Cuba a democracia radical, contra-hegemónica, não liberal, é a condição de tudo o resto. E por que razão? A crise da democracia liberal é hoje mais evidente do que nunca. É cada vez mais evidente que a democracia liberal não garante as condições da sua sobrevivência perante os múltiplos “fascismos sociais”, que é como designo a conversão das desigualdades económicas em desigualdades políticas não directamente produzidas pelo sistema político do Estado capitalista, mas com a sua cumplicidade. Por exemplo, quando se privatiza a água, a empresa proprietária passa a ter direito veto sobre a vida das pessoas (quem não paga a conta, fica sem água). Trata-se aqui de muito mais do que um poder económico ou de mercado. Apesar de evidente, esta crise sente dificuldade de abrir um espaço para a emergência de novos conceitos de política e democracia. Esta dificuldade tem duas causas.

Por um lado, o domínio das relações capitalistas, cuja reprodução exige hoje a coexistência entre a democracia de baixa intensidade e os fascismos sociais. Por outro lado, a hegemonia da democracia liberal no imaginário social, muitas vezes através de recurso a supostas tradições ou memórias históricas que a legitimam. Em Cuba não está presente nenhuma destas duas dificuldades. Nem dominam as relações capitalistas, nem há uma tradição liberal minimamente credível. Assim, será possível assumir a democracia radical como ponto de partida, sem ser necessário arrostar com tudo o que está já superado na experiência dominante da democracia nos últimos cinquenta anos.

2 – Da vanguarda à retaguarda. Para que tal ocorra, para que o democrático não se reduza a mero inventário de logros e argumentações retóricas, antes se realize sistemicamente, deverá ser dado um passo importante: a conversão do partido de vanguarda em partido de retaguarda. Um partido menos de direcção e mais de facilitação; um partido que promove a discussão de perguntas fortes, para que no quotidiano das práticas sociais os cidadãos e as comunidades estejam mais bem capacitados para distinguir entre respostas fortes e respostas fracas. Um partido que aceita com naturalidade a existência de outras formas de organizações de interesses, com as quais procura ter uma relação de hegemonia e não uma relação de controlo. Esta transformação é a mais complexa de todas e só pode ser realizada no âmbito da experimentação seguinte.

3 – Constitucionalismo transformador. As transições em que há transformações importantes nas relações de poder passam, em geral, por processos constituintes. Nos últimos vinte anos, vários países da África e da América Latina viveram processos constituintes. Esta história mais recente permite-nos distinguir dois tipos de constitucionalismo: o constitucionalismo moderno propriamente dito e o constitucionalismo transformador. O constitucionalismo moderno, que prevaleceu sem oposição até há pouco tempo, foi um constitucionalismo construído de cima para baixo, pelas elites políticas do momento, com o objectivo de construir Estados institucionalmente monolíticos e sociedades homogéneas, o que sempre envolveu a sobreposição de uma classe, uma cultura, uma raça, uma etnia, uma região em detrimento de outras. Ao contrário, o constitucionalismo transformador parte da iniciativa das classes populares, como uma forma de luta de classes, uma luta dos excluídos e seus aliados, visando criar novos critérios de inclusão social que ponham fim à opressão classista, racial, étnica cultural, etc. Uma tal democratização social e política implica a reinvenção ou refundação do Estado moderno. Tal reinvenção ou refundação não pode deixar de ser experimental, e esse carácter aplica-se à própria Constituição. Ou seja, se possível, a nova Constituição transformadora deveria ter um horizonte limitado de validade, por exemplo, cinco anos, ao fim dos quais o processo constituinte deve ser reaberto para corrigir erros e introduzir aprendizagens. O limite da validade da nova Constituição tem a vantagem política – preciosa em períodos de transição – de não criar nem ganhadores nem perdedores definitivos. Cuba tem as condições ideais neste momento para renovar o seu experimentalismo constitucional.

4 – Estado experimental. Por caminhos distintos, tanto a crise terminal por que passa o neoliberalismo como a experiência recente dos estados mais progressistas da América Latina revelam que estamos a caminho de uma nova centralidade do Estado, uma centralidade mais aberta à diversidade social (reconhecimento da interculturalidade, plurietnicidade, e mesmo plurinacionalidade, como no caso do Equador e da Bolívia), económica (reconhecimento de diferentes tipos de propriedade, seja estatal, comunitária ou comunal, cooperativa ou individual) e política (reconhecimento de diferentes tipos de democracia, seja representativa ou liberal, participativa, deliberativa, referendária, comunitária). De uma centralidade assente na homogeneidade social a uma centralidade assente na heterogeneidade social. Trata-se de una centralidade regulada pelo princípio da complexidade. A nova centralidade opera de formas distintas em áreas onde a eficácia das soluções está demonstrada (em Cuba, a educação e a saúde, por exemplo, apesar da degradação actual da qualidade e equidade do sistema), em áreas onde, pelo contrário, a ineficácia está demonstrada (em Cuba, o crescimento das desigualdades, os transportes ou a agricultura, por exemplo) e em áreas novas, que são as mais numerosas em processos de transição (em Cuba, por exemplo, criar una nova institucionalidade política e reconstruir a hegemonia socialista com base numa democracia de alta intensidade, que promova simultaneamente a redução da desigualdade social e a expansão da diversidade social, cultural e política). Para as duas últimas áreas (áreas de ineficácia demonstrada e áreas novas) não há receitas infalíveis ou soluções definitivas.

Nestas áreas, o princípio da centralidade complexa sugere que se siga o princípio da experimentação democraticamente controlada. O princípio da experimentação deve percorrer toda a sociedade e para isso é necessário que o próprio Estado se transforme num Estado experimental. Numa fase de grandes mutações no papel do Estado na regulação social, é inevitável que a materialidade institucional do Estado, rígida como é, seja sujeita a grandes vibrações que a tornam campo fértil de efeitos perversos. Acresce que essa materialidade institucional está inscrita num tempo-espaço nacional estatal que está a sofrer o impacto cruzado de espaços-tempo locais e globais.

Como o que caracteriza as épocas de transição é coexistirem nela soluções do velho paradigma com soluções do novo paradigma, e de estas últimas serem por vezes tão contraditórias entre si quanto o são com as soluções do velho paradigma, penso que se deve fazer da experimentação um princípio de criação institucional, sempre e quando as soluções adoptadas no passado se tenham revelado ineficazes. Sendo imprudente tomar nesta fase opções institucionais irreversíveis, deve transformar-se o Estado num campo de experimentação institucional, permitindo que diferentes soluções institucionais coexistam e compitam durante algum tempo, com carácter de experiências-piloto, sujeitas à monitorização permanente de colectivos de cidadãos, com vista a proceder à avaliação comparada dos desempenhos. A prestação de bens públicos, sobretudo na área social,7 pode assim ter lugar sob várias formas, e a opção entre elas, a ter lugar, só deve ocorrer depois de as alternativas serem escrutinadas na sua eficácia e qualidade democrática por parte dos cidadãos.

Esta nova forma de um possível Estado democrático transicional deve assentar em três princípios de experimentação política. O primeiro é que a experimentação social, económica e política exige a presença complementar de várias formas de exercício democrático (representativo, participativo, comunitário, etc.). Nenhuma delas, por si só, poderá garantir que a nova institucionalidade seja eficazmente avaliada. Trata-se de um princípio difícil de respeitar, sobretudo em virtude de a presença complementar de vários tipos de prática democrática ser, ela própria, nova e experimental. Oportuno recordar aqui a afirmação de Hegel: “quem tem medo do erro, tem medo da verdade”.

O segundo princípio é que o Estado só é genuinamente experimental na medida em que às diferentes soluções institucionais são dadas iguais condições para se desenvolverem segundo a sua lógica própria. Ou seja, o Estado experimental é democrático na medida em que confere igualdade de oportunidades às diferentes propostas de institucionalidade democrática. Só assim a luta democrática se converte verdadeiramente em luta por alternativas democráticas. Só assim é possível lutar democraticamente contra o dogmatismo de uma solução que se apresenta como a única eficaz ou democrática. Esta experimentação institucional que ocorre no interior do campo democrático não pode deixar de causar alguma instabilidade e incoerência na acção estatal, e pela fragmentação estatal que dela eventualmente resulte podem sub-repticiamente gerar-se novas exclusões.

Nestas circunstâncias, o Estado experimental deve não só garantir a igualdade de oportunidades aos diferentes projectos de institucionalidade democrática, mas deve também inclusão, que tornem possível a cidadania activa necessária a monitorar, acompanhar e avaliar o desempenho dos projectos alternativos.

7 Por exemplo, transportes públicos estatais ao lado de transportes cooperativos ou de pequenos empresários; produção agrícola em empresas estatais, ao lado de empresas cooperativas, comunitárias ou de pequenos empresários capitalistas.

De acordo com a nova centralidade complexa, o Estado combina a regulação directa dos processos sociais com a meta-regulação, ou seja, a regulação de formas estatais de regulação social, cuja autonomia deve ser respeitada, desde que respeitem os princípios de inclusão e participação consagrados na constituição.

5 – Outra produção é possível. Esta é uma das áreas mais importantes de experimentação social e Cuba pode assumir neste domínio uma liderança estratégica na busca de soluções alternativas, quer aos modelos de desenvolvimento capitalista, quer aos modelos de desenvolvimento socialista do século XX. No início do século XXI, a tarefa de pensar alternativas económicas e sociais e por elas lutar é particularmente urgente por duas razões relacionadas entre si. Em primeiro lugar, vivemos numa época em que a ideia de que não há alternativas ao capitalismo obteve um nível de aceitação que provavelmente não tem precedentes na história do capitalismo mundial. Em segundo lugar, a alternativa sistémica ao capitalismo, representada pelas economias socialistas centralizadas, revelou-se inviável. O autoritarismo político e a inviabilidade económica dos sistemas económicos centralizados foram dramaticamente expostos pelo colapso destes sistemas nos finais dos anos 1980 e princípios dos 1990.

Paradoxalmente, nos últimos trinta anos, o capitalismo revelou, como nunca antes, a sua pulsão auto-destrutiva, do crescimento absurdo da concentração da riqueza e da exclusão social, à crise ambiental, da crise financeira à crise energética, da guerra infinita pelo controlo do acesso aos recursos naturais à crise alimentar. Por outro lado, o colapso dos sistemas de socialismo de Estado abriram o espaço político para a emergência de múltiplas formas de economia popular, da economia solidária às cooperativas populares, das empresas recuperadas aos assentamentos da reforma agrária, do comércio justo às formas de integração regional segundo princípios de reciprocidade e de solidariedade (como a ALBA). As organizações económicas populares são extremamente diversas e se algumas implicam rupturas radicais (ainda que locais) com o capitalismo, outras encontram formas e coexistência com o capitalismo. A fragilidade geral de todas estas alternativas reside no facto de ocorrerem em sociedades capitalistas onde as relações de produção e de reprodução capitalistas determinam a lógica geral do desenvolvimento social, económico e político. Por esta razão, o potencial emancipatório e socialista das organizações económicas populares acaba sendo bloqueado. A situação privilegiada de Cuba no domínio da experimentação económica está no facto de poder definir, a partir deprincípios, lógicas e objectivos não-capitalistas, as regras de jogo em que podem funcionar as organizações económicas capitalistas.

Para realizar todo o fermento de transformação progressista contido no momento político que vive, Cuba vai necessitar da solidariedade de todos os homens e mulheres, de todas as organizações e movimentos de esquerda (no sentido que lhe atribuí neste texto) do mundo e muito particularmente do mundo latino-americano. É este o momento de o mundo de esquerda retribuir a Cuba o muito que deve a Cuba para ser o que é.

Coimbra, 20 de Janeiro de 2009

Boaventura de Sousa Santos

Publicação seriada do

Centro de Estudos Sociais

Praça D. Dinis

Colégio de S. Jerónimo, Coimbra

Correspondência:

Apartado 3087

3001-401 COIMBRA, Portugal

Boaventura de Sousa Santos

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

Universidade de Wisconsin-Madison

Universidade de Warwick


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