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22 de maio de 2010
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14:15

Terra arrasada e vibrante

Por
Sul 21
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Por Marcelo Carneiro da Cunha

Pois saibam os distintíssimos leitores do Sul21 que estou de volta a São Paulo tendo passado praticamente a semana toda na outonal Porto Alegre, com aquela luz que só aí gorjeia, participando do lançamento desse novo jornal, do pré-lançamentos e lançamentos de filme e livros, imerso no mundo cultural que a cidade sustenta por vontade e por achar, me parece, que esse seja o seu destino de cidade.

Sabem o que me lembra Porto Alegre? De uma foto que eu vi, tirada na minha outra cidade do coração, Berlim, logo, logo mesmo, depois do fim da guerra.Na imagem, uma cidade destruída, uma paisagem de ruínas por todos os lados, menos em um lado, em uma esquina. Ali, alguém tinha colocado algumas mesas de café de rua, e um garçom, impecavelmente trajado de garçom de tempos normais, servia uma senhora impecavelmente vestida de senhora à mesa de café, revoguem-se todos os elementos em contrário. Ali havia mesa, garçom e senhora (embora dificilmente houvesse café). Era uma demonstração de espírito e de recusa em admitir o fracasso da vida, mesmo que diante de uma destruição daquele porte.

Não vamos aqui sequer sugerir o absurdo de comparar qualquer coisa com o horror absoluto de uma guerra, mas falemos de espíritos indômitos, que tal? E sinto que Porto Alegre é assim, uma Berlim, do seu jeito. Temos OSPA, sem sala ou recursos à sua altura, mas temos, porque sim. Fazemos cinema, e quem for ver Antes que o Mundo Acabe, o longa de estréia da Ana Luiza Azevedo- que eu, de forma absolutamente desinteressada, desinteressadamente recomendo – vai poder confirmar o nível do cinema que Porto Alegre produz. Temos literatura, e tanto público pra ela, que, em um evento de pré-lançamento de um livro meu, pessoas vieram de 100 km de distância pra assistir escritor! Temos o Sarau Elétrico, caso único no Brasil de platéia pagante para ver gente lendo (claro que “gente” aqui são Luis Augusto Fischer, Claudio Moreno e Katia Sulman). Tive sessão bem cheia do filme num sábado de manhã, e auditório cheio de público para uma conversa com a Claudia Laitano, para lançamento de um livro novo, em pleno sábado à tarde.

Qualidade, em quantidade surpreendente, temos e criamos. Gente para produzir e consumir, temos. Pessoas comoventemente presentes, temos.

O que não temos é Estado presente e fazendo a sua parte. Vide o lamentável estado do Araújo Viana, que o Sul 21 mostra, de fazer chorar – e nada de mesas, garçom ou senhoras para aliviar a sensação de ruína. Vide a ausência de sala para a nossa Sinfônica (e isso enquanto aqui a Sinfônica têm a Sala São Paulo, de tirar o fôlego!). Ou o tempo inexplicável que estamos levando para fazer o Multipalco, do Theatro São Pedro, lembrando que o Theatro foi finalizado em 1858, pelo povo de uma cidade de escassos 30 mil habitantes, mas com desejo de ser grande. Vejam que tivemos até agora, na Secretaria de Cultura, Mônica Leal, que entendia de Cultura como eu entendo de Física Quântica, com a diferença que eu sei alguma coisa de Física Quântica.

Aqui inauguram a linda biblioteca onde era o terrível Carandiru. Como andam as nossas bibliotecas aí? Temos autores, temos editoras, temos livros e fazemos tudo isso na garra e na coragem. Cadê o Estado comprando livros e trazendo-os para perto das pessoas, igualando o acesso a leitura, independentemente da renda?

Porto Alegre é a capital de um estado com uma vocação cultural que tem mais a ver com o tamanho do seu espírito do que do seu físico. Isso é algo de que todos devem se orgulhar. Mas também é algo que precisa ser transformado em ações, em investimentos, em afirmação de desejo e de política. Deixar tudo na mão da iniciativa privada é definir que todo um tipo de produção não vai acontecer, e teremos shows da Isabella Fogaça bancados pelo Zaffari como o ápice do nosso ano cultural. É isso?

Não é, não pode ser, e basta uma semana em Porto Alegre para eu me certificar que não deixamos de ser o que somos. Mas que sim, precisamos refazer umas escolhas e reafirmar certos princípios. Não somos um deserto, somos um oásis, e o Estado parece gostar mais de areia do que da gente. É hora de fazermos o vento soprar pro lado de lá, mostrando o que somos, o que queremos, e exigindo que quem tem o poder no Rio Grande e na cidade se comporte à altura. E a altura é aquela que nós, por nossa vitalidade, escolhemos. Não aquela que eles, burocrativamente, sem alma, tentam impor.


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