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26 de maio de 2010
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14:18

Quando a imprensa perde a compostura

Por
Sul 21
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Por Marcelo Carneiro da Cunha

Estimados leitores, abraços. Com o Gremão fora da final da Copa do Brasil, tendo que aguardar enquanto a outra Copa, uma que vai acontecer na África, parece, não começa, só nos resta mesmo olhar ao redor para ver o que acontece, se acontece.

E o que eu vi, nos últimos dias, deixou os meus escassos cabelos em pé, estimados leitores! Na sexta-feira passada, a Folha de SP, antes de lançar a sua reforma gráfica que a deixou com ar de imprensa sensacionalista – o que é curioso-, deu matéria de capa com foto das candidatas Dilma e Marta, com Antônio Palocci, caminhando por alguma rua em Nova York. A foto mostrava a eles passando ao lado de uma vitrine de loja com um grande adesivo de Sale, ou, em bom português, Liquidação. Isso bastou para que a Folha estourasse a chamada “Políticos em Liquidação”, ao lado da foto.

Agora me expliquem os leitores, muito mais capacitados do que eu, qual a relação possível entre a foto, as pessoas mostradas nela, e o título?

Seria uma oferta de candidatos brasileiros a preço de ocasião para os americanos comprar? Seria a insinuação de que aqueles políticos, por algum motivo ainda não revelado, estariam com seus cacifes em baixa? A Marta, que aparece em primeiro lugar nas pesquisas na campanha para o Senado por São Paulo? A Dilma, que no dia seguinte apareceria empatada ou na frente da corrida para a Presidência, tendo escalado – e apenas para o Datafolha, incríveis sete pontos em umas poucas semanas? Antônio Palocci, que nem ao menos é candidato, mas seguramente será uma figura de alta relevância em um possível governo Dilma, em liquidação?

Nessas horas, qualquer intenção do jornal de se apresentar ao país como um paradigma de qualquer coisa, fora a desinformação, se torna irrelevante.

Em um momento anterior, a mesma Folha levou ao nível mais rasteiro o seu espaço, dando um pedaço nobre dele para um lamentável, equivocado, falso, depoimento de um personagem que compartilhou de uma cela com Lula, e afirmou, em um texto seu, que o atual presidente teria defendido uma tese pedófila, ou algo assim, na prisão.

Como um veículo com um mínimo de decência faz algo tão torpe, tão abaixo da linha dágua, mirando, qual torpedo norte-coreano, e tão maluco quanto, o que não consegue atingir por outros meios?

E agora, nessa semana, eu vejo com um desconforto ósseo, a capa da revista Veja e penso – deus meu, a que novo e baixo ponto chegamos.

Na capa, uma foto da procuradora Vera Lucia Gomes, do Rio de Janeiro, presa por abuso e violência contra a menina de dois anos que ela havia adotado. A manchete, aplicada sobre a foto, diz: “A Confissão da Bruxa”.

O que o estimado leitor acha disso?

Eu acho que a imprensa não pode fazer algo assim, não pode. Porque a imprensa é um dos pilares de uma sociedade moderna. Ela não é, não deve ser uma piromaníaca das nossas emoções coletivas, mesmo que as possa amplificar de tempos em tempos, em alguns territórios menos explosivos, como o do futebol.

Quando a imprensa perde a cabeça, ou age para que as pessoas percam as suas, nosso mundo se torna mais perigoso, e, num extremo, está aí Ruanda pra provar. A imprensa vive para mostrar a sua importância e o seu poder. Mas não deve viver para abusar de maneira tão obscena, dele.

Uma pessoa acusada de um crime é uma pessoa acusada de um crime. Até ser julgada, ela tem o benefício de ser considerada uma inocente em potencial. Após essa capa da revista Veja, a tal procuradora, agora oficialmente bruxa, não tem mais esse direito assegurado. Isso, estimados leitores, é prepotência, da mais completa, e é uma ameaça a cada um de nós, a todos nós. Eu já tive um amigo ofendido de maneira absurda por um colunista dessa revista. São dois milhões e meio de exemplares, estimados leitores, uns dez milhões de leitores. Se você é estigmatizado por ela, mesmo que vença na Justiça, anos mais tarde, quem repõe o que lhe foi tirado?

Como jornalista, é muito duro ver a imprensa se comportando desse jeito. Por sorte, está aqui a internet, e esse Sul21 é uma demonstração disso – para reduzir o poder dessa imprensa, fortalecer a pluralidade, a diversidade, multplicar as fontes, igualar as vozes. O problema, é que a outra imprensa segue aí, fazendo cabeças, que estão sendo educadas pelo viés do preconceito e do abuso do poder. Isso é triste, é bárbaro, e não enriquece a nossa política ou a nossa vida.

Que os leitores demonstrem mais bom senso do que o que andam lendo, onde andam lendo. Que leiam mais a nós, que nos mantemos do lado da informação opinada, com lado, mas sem razões perversas nos movendo. É o que eu espero, é o que me resta esperar, porque, sem isso, hutus e tutsis passam a se procurar com as piores intenções, tudo sendo, tão apenas, uma questão de tempo.


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