Cidades
|
3 de agosto de 2020
|
22:28

Empresas de ônibus devem mais de R$ 60 milhões em taxa cobrada de passageiros e que Marchezan quer extinguir

Por
Luís Gomes
[email protected]
Reajuste aprovado pelo Comtu precisa ser ratificado pelo prefeito Melo| Foto: Joana Berwanger/Sul21
Reajuste aprovado pelo Comtu precisa ser ratificado pelo prefeito Melo| Foto: Joana Berwanger/Sul21
Pacote da Prefeitura para o transporte público ainda aguarda na Câmara de Vereadores. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Em janeiro de 2020, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), apresentou um pacote com cinco projetos para a área do transporte público com objetivo de reduzir o valor da tarifa de ônibus, que ainda aguarda para ser votado na Câmara de Vereadores. Uma das propostas do pacote é a extinção da taxa de administração da Câmara de Compensação Tarifária, equivale a 3% do valor da tarifa. Contudo, segundo planilha da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) obtida por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e encaminhada ao Sul21, na prática, as empresas já não estão repassando esse valor para a Prefeitura, apesar de estarem cobrando dos passageiros. Desde a entrada em vigor dos contratos da licitação do sistema até o final de abril de 2020, a dívida das empresas com a Prefeitura já somava quase R$ 60 milhões.

A Lei nº8133/1998, que disciplina o funcionamento do sistema de transporte público de Porto Alegre, estabeleceu a criação da Câmara de Compensação Tarifária para promover o equilíbrio econômico-financeiro do sistema, o que ocorre por meio de transferências de receitas entre os consórcios operadores. De acordo com o artigo 32 da legislação, a CCT deveria ter suas despesas financiadas por um valor equivalente a 3% do total da receita das empresas com a tarifa. Em 2020, esse valor equivale a R$ 0,15 por passagem.

No entanto, apesar de os 15 centavos estarem sendo cobrados na tarifa, todas as empresas operadoras do sistema, inclusive a Carris, não estão fazendo o repasse à Prefeitura. Segundo a EPTC, a dívida acumulada e corrigida dos operadores dos sete lotes do sistema de transporte público da Capital com a CCT somavam R$ 59,862 milhões ao final de abril de 2020 — último dado disponibilizado pela resposta ao pedido da LAI ao qual o Sul21 teve acesso. Levando em consideração o fato de que a taxa continuou não sendo repassada, o valor já supera a casa dos R$ 60 milhões.

Segundo a planilha, o consórcio MOB, que opera os lotes 1 e 2, referente às linhas que circulam na zona norte da Capital, deixou de repassar os valores da CCT em 1º de setembro de 2019, acumulando até 30 de abril uma dívida de R$ 3,329 milhões — corrigida pela inflação e por juros.

Já o consórcio Sul, que opera os lotes 3 e 4, referente às linhas que circulam na zona sul, deixou de fazer os repasses em agosto de 2016, apenas poucos meses após a entrada em vigor da licitação, em fevereiro do mesmo ano. A dívida da empresa já somava, em abril deste ano, R$ 30,558 milhões.

O consórcio Leste, que opera os lotes 5 e 6, referentes às linhas que circulam na zona leste, também deixou de fazer os repasses em agosto de 2016, acumulando uma dívida de R$ 23,783 milhões. Mesmo a Carris, empresa pública municipal que opera o lote 7, deixou de fazer os repasses em outubro de 2019, acumulando uma dívida de R$ 2,277 milhões.

A reportagem do Sul21 entrou em contato no final da semana passada com a EPTC e com a Associação dos Transportadores de Passageiros de Porto Alegre (ATP-POA) questionando sobre os valores devidos, se há previsão de pagamento, e se a aprovação do projeto enviado pelo prefeito à Câmara resultaria na extinção das dívidas. Por meio de sua assessoria, a EPTC respondeu que existem ações judiciais interpostas para cobrança dos valores devidos. A ATP não respondeu até o fechamento desta matéria.

Para o economista André Augustin, pesquisador do Observatório das Metrópoles e que há anos estuda a questão da tarifa de ônibus em Porto Alegre, o projeto foi apresentado sem a devida transparência a respeito da dívida das empresas com a CCT. “A Prefeitura propôs o fim de uma taxa como se estivesse sendo paga e não está. O mínimo que podia fazer é colocar para discussão pública”, diz. “É uma taxa que entra no cálculo da passagem. Hoje em dia, é 15 centavos. Toda vez que a gente compra passagem, estamos pagando e as empresas deveriam repassar para EPTC, mas não estão repassando. Cobram do passageiro e colocam no bolso”, diz.

Augustin pondera que a Prefeitura já havia mudado a legislação para beneficiar as empresas no caso da idade máxima de circulação dos ônibus, que era de 10 anos, conforme a licitação, e foi elevada para 13 anos na gestão Marchezan.

Multas não pagas

Além dos valores devidos à CCT, as operadores de transporte da Capital ainda possuem outra dívida com a Prefeitura referente a multas não pagas pelo não cumprimento de metas de desempenho previstas na licitação. O edital determinou que, anualmente, a Prefeitura deveria elaborar um Relatório de Avaliação Anual do desempenho das concessionárias a partir de sete “Índices de Desempenho Operacionais”: índice de cumprimento de viagem; índice de quebra; índice de reprovação em vitoria; índice de acidentes de trânsito; índice de autuações; índice de reclamação de pessoal e índice de reclamação de viagens. Cada indicador é medido mensalmente e a soma deles compõe o VDTA (Valor de Desempenho Total Anual).

Por exemplo, o índice de partida para o quarto ano da operação (2019/2020) era de 93,18%, sendo a meta aumentar em 0,0625% a cada trimestre, até chegar a 97,5% no final do ano. De acordo com o Relatório referente a 2020, também obtido pela LAI (os demais estão publicados no site da EPTC), apenas o lote 3 cumpriu a meta referente a este indicador no quarto ano da licitação. Em relação ao índice de quebra, nenhuma das empresas cumpriu as metas anuais, com apenas o lote 1 cumprindo em um único trimestre. Em relação ao índice de reprovação da vistoria, os lotes 1,2,4,5 e 6 atingiram as metas anuais. Em relação ao índice de acidentes de trânsito, todas os lotes cumpriram as metas. Em relação ao índice de autuações, apenas os lotes 1 e 4 cumpriram as metas. Em relação ao índice de reclamação de pessoal operacional, todas as empresas cumpriram as metas. Em relação ao índice de reclamação de viagens, todas as empresas cumpriram as metas. Nenhum dos lotes foi aprovado em relação ao VDTA, o que já havia acontecido nos três anos anteriores

Pelo edital, o primeiro ano de não cumprimento do valor de desempenho total anual deveria resultar apenas em uma penalidade de advertência por escrito. A partir de então, os lotes que tivessem de 2 a 3 indicadores não cumpridos deveriam pagar uma multa equivalente a 0,50% da receita ajustada, de 4 a 5 uma multa de 0,75% da receita e a multa subiria para até 1% no caso de não cumprimento da meta em 6 ou 7 dos indicadores.

O pedido feito pela LAI ao qual o Sul21 teve acesso questionou a EPTC a respeito da cobrança das multas e obteve como resposta que, de fato, a fiscalização apontou a necessidade de aplicação de multa nos relatórios referentes ao segundo e terceiro anos de licitação — e de encaminhamento de advertência em relação ao primeiro ano. Contudo, a EPTC informou que os processos de cobrança em relação ao segundo ano ainda estavam pendentes de julgamento e, em relação ao terceiro ano, na fase de Intenção de Aplicação de Penalidade. Em relação ao quarto ano, a EPTC disse que a avaliação ainda estava sendo apurada, apesar de o relatório encaminhado também por LAI já ter sido finalizado.

O edital também previa que, em casos de não cumprimento do VTDA por três anos consecutivos ou nove anos alternados, a Prefeitura poderia romper os contratos de concessão sem a necessidade de pagar qualquer indenização às empresas. A EPTC foi questionada pela reportagem sobre a situação dos processos e se estudava a possibilidade de rompimento dos contratos, ao que respondeu: “Todos os indicadores previstos em contrato são cobrados anualmente. Se não forem atingidos os índices a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) toma todas as medidas cabíveis – notificações, multas e até ações judiciais”.

Também questionou sobre o valor das multas pendentes, mas não obteve resposta. Em 2018, as empresas privadas transportaram 131.285.170 passageiros equivalentes (cálculo que pondera as isenções e descontos para chegar a um total de passagens cheias pagas). Durante a maior parte daquele ano, a tarifa foi de R$ 4,30, o que resultaria num faturamento de R$ 564,5 milhões projetado para 2018 inteiro. Caso a multa de 0,5% fosse aplicada pelo descumprimento de 2 a 3 indicadores, verificados em todas as empresas privadas, o valor da multa a ser aplicado seria de cerca de R$ 2,8 milhões*.

*Este é um valor projetado caso a tarifa fosse de R$ 4,30 durante todo o ano. No primeiro trimestre de 2018, a tarifa era de R$ 4,05. 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora