Cidades
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23 de março de 2020
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20:39

Em tempos de coronavírus, famílias da Vila Nazaré ainda sofrem com remoções e falta d’água

Por
Sul 21
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Em tempos de coronavírus, famílias da Vila Nazaré ainda sofrem com remoções e falta d’água
Em tempos de coronavírus, famílias da Vila Nazaré ainda sofrem com remoções e falta d’água
Remoções na Vila Nazaré começaram em junho de 2019 e continuam mesmo em meia a pandemia de coronavírus.
Foto: Luiza Castro/Sul21

Luciano Velleda

A combinação do avanço da pandemia de coronavírus em Porto Alegre, com a orientação para que as pessoas fiquem em casa, levou o Ministério Público Estadual (MPE) a entrar com uma ação para impedir a continuidade da remoção das famílias da Vila Nazaré. O MPE alega que tem havido demolição de residências com móveis e pertences no interior, causadas pelo Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) e a Fraport Brasil S. A, gestora do aeroporto da capital. A Vila Nazaré tem sido território de controvérsia em função de desapropriação para a ampliação da pista do aeroporto.

Segundo o MPE, as remoções tem acontecido “sem qualquer alternativa habitacional durante uma pandemia para a qual a principal orientação de governos e órgãos de saúde do mundo inteiro é permanecer em casa, em isolamento social”. A ação é assinada também pela Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul e a Defensoria Pública da União.

“A realização de remoções e realocações, no quadro atual de Pandemia, se mostra como medida absurda e que coloca em risco as pessoas removidas, em sua grande maioria em estado de vulnerabilidade social, idosos e pessoas com problemas sérios de saúde, afastando-os do local que conhecem e distanciando-os de suas redes de proteção. Dessa forma, os ora subscritores entendem que, ressalvada essa hipótese em que haja expressa e escrita concordância das famílias e comunicadas de imediato a esse Juízo, e desde que realizado conforme protocolos sanitários adequados, que devem ser trazidos a juízo previamente, toda e qualquer remoção/realocação deve ser suspensa”, justifica o MPE.

No pedido para a interrupção das remoções, o órgão anexa relatos de moradores que tem sofrido com as ações que, sem ordem judicial, não se enquadrariam no modelo de  reassentamento ou realocação, deixando famílias em situação de rua num grave momento de saúde pública causado pela pandemia.

“Minha casa foi demolida por agentes do DEMHAB, ITAZI, FRAPORT e pela empresa de demolição prestadora de serviços, juntamente com a guarnição da brigada militar. Meus pertences (roupas e 1.200 reais em dinheiro) foram danificados e alguns extraviados. Fiquei na rua sem um teto para morar, fui humilhado pelos mesmos perante a comunidade, alegaram que eu não tinha comprovação de que era dono da casa, sendo que moro na vila há mais de 25 anos e que não havia feito o cadastro da casa (selagem do DEMHAB 406). Tentei impedir a demolição sem sucesso, riam o tempo todo do meu desespero, sem poder fazer nada assistindo a patrola demolir minha casa, foi desumano o que fizeram, mesmo falando que era minha a casa eles continuaram a demolir ignorando meu desespero, e afirmação que tinha documentos que comprovavam a posse da casa, simplesmente ignoraram tudo, estou dormindo no carro sem a mínima condição”, diz um dos relatos.

Outro relato afirma: “Minha casa foi demolida pelo DEMHAB, ITAZI, FRAPORT E DEMOLIDORA (prestadora de serviços), sem a minha autorização com meus pertences dentro, perdi todas as minhas coisas do bar e objetos pessoais, perdi a casa, fogão de 6 bocas, freezer vertical, microsistem, forno de microondas, balcão, armário, espelhos, balcão com 2 duas cubas, mesa e cadeiras e estou sem ter onde trabalhar, não me deram previsão de nada, apenas disseram que precisavam da área desocupada. Segundo IVO, responsável pela demolição, a casa estava fechada por isso demoliu, os vizinhos gritaram para não demolir a casa com os pertences, mas foram ignorados demolindo com todas as coisas dentro sem nenhuma piedade, destruíram tudo o que havia sido conquistado com muito suor da família, que hoje está sem uma fonte de renda, atitude desumana”.

A ação pede a “abstenção pelos réus de qualquer medida tendente a demolir residência ou remover morador da área impactada pela ampliação do Aeroporto Salgado Filho, sem a oferta de unidade habitacional correspondente (nos termos e condições do pedido anterior), uma vez que esse tipo de remoção pressupõe a existência de prévia ordem judicial específica para sua realização”.

A ação civil pública foi ajuizada, na última quinta-feira (19), na 3ª Vara Federal de Porto Alegre, todavia, com a negativa do pedido, os órgãos solicitantes entraram com pedido de urgência no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Nesta segunda-feira (23), o TRF4 também decidiu pela improcedência do pedido e negou o recurso. Como justificativa, o desembargador Cândido Alfredo Silva Leal Júnior ponderou que no último dia 11, o TRF4 já havia apreciado um agravo de instrumento interposto pelos autores da ação e confirmado a decisão do juízo de origem quanto à remoção das famílias. O desembargador ainda alegou que a condução que o “juízo de origem vem emprestando ao processo parece correta e está de conformidade com o devido processo legal, inclusive devendo se mencionar o esforço feito pelo juízo com a realização de  minuciosa audiência de esclarecimento e tentativa de conciliação”.

Falta de água

Segundo Eduardo Osório, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a situação amanheceu mais tranquila, nesta segunda-feira (23), na Vila Nazaré. Osório diz que o abandono sempre foi uma situação constante na Vila Nazaré, com falta de água, luz e a negativa de regularização das mais de mil famílias que já viveram na localidade. O MTST denuncia que as remoções das famílias, que iniciaram em meados de 2019, tem sido a revelia dos protocolos, sem transparência e com as máquinas derrubando tudo, sem cuidado com os pertences das famílias. “É um cenário de guerra, exatamente para as famílias em dúvida saírem o quanto antes”, afirma Eduardo Osório.

“Os escombros são deixados para trás de propósito, os fios da rede de luz são cortados, canos de água e esgoto quebrados pela máquinas que derrubam as casas de famílias com seus pertences dentro e crianças por perto. É neste cenário de guerra e de medo em que estão vivendo as famílias com suas crianças e idosos que seguem lutando pelo direito a uma vida digna. Não é de hoje que os moradores da Vila Nazaré sofrem com a falta de água e outros serviços básicos, mas hoje estamos em situação calamitosa em Porto Alegre e no resto do Brasil. A crise de pandemia do COVID-19 ou Coronavírus vem se alastrando mundo afora e preocupando governos e populações de todos os países”, explica o MTST em sua redes sociais.

Além da denúncia de ilegalidade nas remoções, Osório argumenta que a falta de água em um momento crítico da pandemia, tem tornado ainda mais difícil a situação das famílias que estão na Vila Nazaré. “Não tem como enfrentar o coronavírus sem água. O que está em jogo agora é a vida das pessoas”, afirma. Para o membro do MTST, a questão da remoção é um tema que deve ser resolvido pela Justiça, porém, diz ele, de nada adianta suspender as remoções e manter as famílias em água diante de tal crise de saúde pública.

Outro lado

Em nota, o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) afirma que a ação do Ministério Público Estadual (MPE) “não se aplica ao trabalho na Vila Nazaré, uma vez que não se trata de reassentamento compulsório ou forçado e sim consensual. As pessoas querem sair do local”, justifica.

De acordo o órgão da Prefeitura de Porto Alegre, é no momento da pandemia do coronavírus que as devem ser “resguardadas, indo morar em um local com toda a infraestrutura de saneamento e condições de vida saudável, o que não existe na Nazaré. O DEMHAB ainda informa que seguirão ocorrendo quatro remoções por dia, “tomando todas as precauções recomendadas pelas instituições de saúde municipal, estadual e federal”. Com relação a denúncia de falta de água, o órgão diz que não possui rede pública de água por ser uma ocupação irregular — argumento contestado pelo Ministério Público Federal (MPF).

“Há plena informação de que estas famílias residem na localidade há décadas, razão pela qual se pode inferir que: (a) há muito já haviam se perfectibilizado os requisitos para a usucapião da área por seus ocupantes, nos termos do art. 186 da Constituição; (b) após o processo de desapropriação, também se perfectibilizaram os requisitos previstos na Medida Provisória nº 2.220, de 04 de setembro de 2001, que garante a concessão especial de uso em imóvel público”, contesta o MPF.


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