Cidades
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7 de fevereiro de 2020
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18:49

Entidades questionam terceirização do Capitólio: ‘Por que mexer em time que está dando certo?’

Por
Luís Gomes
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Apoiadores e frequentadores da Cinemateca Capitólio tem se mobilizado para discutir a protestar contra o processo de contratualização | Foto: Luiza Castro/Sul21

Luís Eduardo Gomes

A Prefeitura de Porto Alegre prepara para o início de março o lançamento do processo de terceirização da Cinemateca Capitólio. O projeto, tocado pela Secretaria Municipal de Parcerias Estratégicas (SMPE), deve ser encaminhado até o final do mês de fevereiro para a Secretaria Municipal da Cultura (SMC), que é a pasta responsável pela Cinemateca e por publicar o edital.

O processo, no entanto, é visto com muita preocupação por entidades de profissionais da área do audiovisual no Rio Grande do Sul e pela associação que reúne apoiadores e frequentadores da Casa. Eles apontam dois principais problemas: a falta de diálogo e transparência na construção do edital de contratualização do Capitólio e a cedência à iniciativa privada da gestão de algo que, aos seus olhos, está funcionando muito bem.

“Primeiro, nós não entendemos o porquê. Se o prédio estivesse ruim, precisando de conserto, renovação ou sei lá o quê, se a programação estivesse ruim ou se a equipe estivesse ruim, a gente entenderia que se procurasse outra solução. Nós não conseguimos entender mexer no time que está dando certo. Segunda coisa, quem nos garante que irá continuar igual ou melhor, se possível? Nós não sabemos de onde virá. É um edital que a gente não conhece. Pelo menos nós, da Aamica, nunca tivemos acesso”, diz Luiz Antonio Grassi, presidente da Associação dos Amigos da Cinemateca Capitólio (Aamica), que reúne frequentadores e apoiadores da casa.

Grassi argumenta que a atual equipe da Cinemateca, formada por 11 servidores públicos e quatro profissionais terceirizados para programação, projeção e portaria, além da equipe de limpeza, está dando continuidade a uma política cultural de combate à discriminação, de valorização e reintegração social, articulada com diversos segmentos da sociedade e que, caso haja uma terceirização, há o temor de que esse trabalho seja descontinuado.

“É até curioso, poucas vezes a gente consegue ver tão bem as coisas pelas quais a gente luta funcionando muito, muito bem. É uma iniciativa que teve muito êxito e está tendo uma gestão muito boa, muito eficiente e econômica por parte de uma equipe de funcionários da Prefeitura”, diz. “Quem garante que essa política continuará? Vai ter outra equipe, outra entidade e o que vai acontecer? Vai passar apenas filmes cult, filmes populares ou vai ser simplesmente um novo cinema de rua? E o acervo, como vai ser guardado?”, questiona.

Ele ainda pergunta a razão para que a iniciativa seja tomada no último ano do governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB). “Esse governo está acabando em 31 de dezembro. Se ele não continuar, o que é uma possibilidade, um outro governo vai ficar atrelado a um contrato. Isso seria uma coisa razoável?”

Sala de cinema é uma das atrações da Cinemateca, mas não é considerada a função principal da instituição | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em conversa com o Sul21, o secretário municipal de Parcerias Estratégicas, Thiago Ribeiro, defende que a contratualização é necessária para ampliar e qualificar a oferta de serviços à população. Ele afirma que o processo de contratualização começou a ser gestado na SMPE em setembro de 2019. Segundo ele, o primeiro passo foi compreender o funcionamento da Cinemateca, o que ela oferece hoje e o que representa para a população, os serviços que são considerados bons e o que poderia ser melhorado.

Ribeiro afirma que nada será perdido quando uma Organização da Sociedade Civil (OSC) assumir a casa. Pelo contrário, garante que os serviços prestados atualmente são considerados no edital como o patamar mínimo que qualquer entidade deve oferecer para participar da concorrência pública. “A partir de tudo aquilo que foi oferecido pela Cinemateca nos últimos anos para a população, a gente estabeleceu os parâmetros mínimos que precisam ser cumpridos pela futura organização social. Ou seja, na pior das hipóteses, ela vai ser obrigada a fazer pelo menos o que é feito hoje. Mas, na grande maioria dos casos, as metas estipuladas estão acima do que atualmente é oferecido”, diz.

Ele cita como exemplo de ampliação dos serviços a meta que será estipulada em edital de que o número de sessões gratuitas deverá passar dos 20% do total, índice registrado em 2019, para 30%. Da mesma forma, segundo ele, deverão ser mantidos ou ampliados os números de mostras temáticas e sessões obrigatórias.

A próxima etapa do trabalho, de acordo com o secretário, foi conversar com as organizações sociais que poderiam ter interesse em assumir a gestão da Cinemateca para compreender o que elas imaginavam que poderiam assumir de responsabilidades na gestão da casa e valores para essa contratualização. “O modelo foi muito bem recebido por essas organizações”.

Por fim, diz que convidou as associações de profissionais da área audiovisual que têm interesse na preservação do espaço. “A gente apresentou o modelo para eles, eles apresentaram algumas observações. Eles se sentiram muito inseguros, digamos assim, porque não haviam recebido anteriormente a isso um material do que seria essa proposta e a gente explicou que não havíamos feito isso antes porque a gente não tinha ainda um material concreto e objetivo para passar para eles. Assim que nós tivemos esse material, um primeiro movimento que nós fizemos foi justamente de aproximação, porque são importantes as contribuições deles. Eles aí disseram que irão apresentar contribuições mais objetivas para que a gente possa refinar esse modelo. Nós estamos agora no aguardo dessas contribuições”, afirma o secretário.

Coordenadora de Cinema e Audiovisual da SMC e gestora da Cinemateca Capitólio, Daniela Mazzilli expressa uma posição conciliatória. Ela reconhece que todo processo de mudança “gera um medo do desconhecido”, mas pondera que a contratualização ainda está sendo construída e que pode trazer benefícios para o público e para as entidades interessadas na casa. Além disso, afirma que o fato de essas entidades expressarem preocupação é um elemento essencial do processo. “Isso faz com que o processo seja mais transparente futuramente e se consiga entender os gargalos que possam ser criados a partir de uma contratualização. Eu vejo que, quando a gente problematiza, a gente está pensando no futuro”, afirma.

Cinemateca abriga um grande acervo de filmes em diversos formatos, desde o rolo até o digital | Foto: Luiza Castro/Sul21

Reabertura foi construção conjunta

A Cinemateca está localizado onde funcionava antigamente o Cine-Theatro Capitólio, cinema de rua inaugurado em 1928 na esquina da Borges de Medeiros com a Demétrio Ribeiro, no Centro de Porto Alegre. O Capitólio foi, durante décadas, uma das principais atrações culturais da cidade até iniciar um processo de decadência a partir da década de 60, à medida que os cinemas de rua foram perdendo espaço. Chegou a mudar de nome para Cine Premier depois de uma troca de donos e fechou as portas em 1994.

Em 1995, o prédio foi adquirido pela Prefeitura, no âmbito de uma política de revitalização da área central de Porto Alegre. No entanto, a ideia de criar uma cinemateca no local só surgiu em 2001, a partir de uma mobilização da comunidade cinematográfica do Rio Grande do Sul para que a casa se tornasse um espaço de guarda da memória audiovisual do Estado.

Daniela Mazzilli explica que a Cinemateca foi pensada, em primeiro lugar, para ser esse espaço de guarda, que hoje abriga mais de 60 mil itens. A sala de cinema, celebrada por exibir filmes que estão fora do circuito comercial, cinema de arte, experimental e produções de estudantes da área, seria, segundo ela, só a “cereja do bolo”.

Presidente da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS), entidade que encabeçou o movimento pela reabertura do Capitólio, Daniela Strack ressalta que o trabalho atual da Cinemateca é o resultado dessa construção iniciada há 20 anos. “É uma demanda que veio do setor, que veio da sociedade civil e foi sendo construída junto. Acho que o mais grave, além da programação, é essa ideia de terceirização do acervo, porque a gente está lidando com memórias. São doações dos acervos dos nossos profissionais e técnicos. A gente tem na Cinemateca roteiros de trabalhos originais dos diretores, material sensível. Películas que estão lá e que a gente enxergou na Cinemateca Capitólio o lugar adequado para guardar”, afirma.

Para ela, o melhor seria manter a estrutura atual, em que o trabalho de gestão efetuado por servidores públicos é compartilhado com a Fundação de Cinema do Rio Grande do Sul (Fundacine), responsável por ajudar na arrecadação de fundos e ampliar a oferta de serviços com esses recursos. Um dos trabalhos que só foi possível por recursos captados pela Fundacine foi a digitalização de acervos da casa. “A gente acha que essa gestão continuar sendo compartilhada seria o ideal, porque a gente está lidando com uma Cinemateca que não é só uma sala de cinema, ela é muito mais ampla. Não é só o fato de ter uma programação super qualificada”, diz Daniela.

Possibilidade de o acesso ao acervo ser cobrada preocupa profissionais da área | Foto: Luiza Castro/Sul21

Uma preocupação que Daniela Strack expressa é que, caso a contratualização seja confirmada, o acesso e a consulta ao acervo da Cinemateca não sejam mais gratuitos, como, segundo ela, aconteceu após a terceirização da Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo. “A gente tem muito medo que isso aconteça com a Cinemateca aqui em Porto Alegre, essa restrição do acervo. Na Cinemateca Brasileira, o pesquisador tem que pagar para ir lá trabalhar, não é mais uma biblioteca aberta”, afirma.

Outra preocupação que compartilha com Grassi, da Aamica, é sobre a possibilidade de descontinuidade após a contratualização, citando o caso do Museu de Arte do Rio (MAR), instituição que é administrada há sete anos por uma OSC e está ameaçada de fechar as portas por decisão política do prefeito Marcelo Crivella de não honrar o contrato. “Imagina tu fechar um lugar que precisa de uma climatização diária, precisa de uma estrutura. Como é que a gente vai lidar com isso? Qual é a garantia que a gente tem que a Prefeitura vai honrar com esse valor?”, questiona Daniela Strack.

O edital deverá prever que, em caso de erro de gestão por parte da OSC, a Prefeitura poderia reassumir a casa em 60 dias, mas Daniela pondera que, uma vez contratualizado, seria difícil recuperar serviços desmobilizados. “Como assumir em 60 dias se vai estar tudo desmobilizado?”

A respeito do acervo, o secretário Thiago Ribeiro diz que a gestão também deverá ser passada para a OSC, mas afirma que serão estabelecidos padrões de qualidade para a sua manutenção e que o edital prevê a melhoria dos sistemas de climatização e controle de umidade. Ele diz que será exigida a instalação de um sistema que emita alertas para variações bruscas de temperatura, o que não existe hoje, e que a OSC deverá ter uma equipe técnica capacitada para manutenção do acervo.

Daniela Strack também questiona o processo de contratualização da Cinemateca, especialmente a forma como ele tem sido conduzido pela SMPE. Por exemplo, com a implementação de metas que não seriam factíveis.  De acordo com dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), a taxa de ocupação média do cinema do Capitólio — 30 pessoas por sessão — é quase o dobro da média nacional, 16 por sessão. Mesmo assim, a SMPE projeta que seria possível sair dos atuais 31 mil espectadores anuais para a casa dos 50 mil, ainda que este número seja acima de todos os cinemas de sala única do País, incluindo o circuito comercial.

Além disso, ela reclama da falta de diálogo, uma vez que a conversa com o secretário Thiago Ribeiro só teria sido agendada depois de “muita batalha”. Conforme conta, um primeiro contato entre as partes foi realizado em agosto passado, depois de um evento promovido pela APTC-RS na própria Cinemateca para debater o futuro da instituição. A partir desse primeiro contato, Ribeiro teria ficado de chamar as entidades ligadas ao setor audiovisual para apresentar o estudo de economicidade do projeto. “Isso nunca aconteceu. A gente tentou uma série de vezes marcar essa próxima reunião, não conseguimos”, diz Daniela.

A presidente da APTC-RS diz que, quando Daniela Mazzilli assumiu o cargo de coordenadora de Cinema e Audiovisual da SMC e, consequentemente, a gestão da Cinemateca em novembro passado, as entidades tentaram diversas vezes agendar uma nova reunião com a SMPE, o que só veio a acontecer na última semana de janeiro, depois de protocolados pedidos formais junto à Prefeitura. “O discurso dele é como se as portas estivessem abertas e não é bem assim, foi bem difícil”, afirma Daniela Strack.

Uma nova reunião está marcada para a próxima semana, mas ela avalia que é pouco tempo. “Eles estão há um ano com esse projeto e aí chamam as entidades para colaborar, mas elas só tem uma semana. Não é realmente uma colaboração. Não nos chamaram para sentar junto e pensar projetos, de que forma seria essa parceria”, diz.

A biblioteca da Cinemateca é fonte de pesquisa para profissionais de diversas áreas, não apenas do setor audiovisual | Foto: Luiza Castro/Sul21

Terceirização em todas as áreas

Não é nenhuma novidade que o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) defende terceirizações como soluções para todas as áreas do serviço público. “Achamos que o serviço tem que ser público, pago com dinheiro público. Mas não precisa ser feito pelos servidores, mas sim fiscalizados por eles”, disse, por exemplo, em palestra na Federasul em março passado.

No último ano, ele tem acelerado os processos de terceirização na área da saúde, mesmo atropelando decisões judiciais, e incentivado experiências na área da educação. Mais recentemente, esses processos chegaram também à cultura. Nesta quinta-feira (6), ele lançou o edital de contratualização da Pinacoteca Ruben Berta e do Atelier Livre Xico Stockinger. A ideia é que sejam contratadas OSCs para aumentar a oferta de atividades e programações culturais nestes espaços, justificativa que deverá ser repetida na terceirização da Cinemateca.

“É uma tentativa honesta para que os equipamentos culturais não se percam. O resultado atual todos sabemos que não é bom. Vamos experimentar um modelo novo para que Porto Alegre ande para a frente”, defendeu no lançamento dos editais o secretário municipal de Cultura, Luciano Alabarse, que, até o momento, não tem liderado o processo da Cinemateca.

Outra preocupação compartilhada a respeito da contratualização é com a questão da mão de obra. Uma das principais características de processos de terceirização é a rotatividade da mão de obra e a quebra de vínculo do funcionário com o serviço público que ocorre quando um servidor estatutário é substituído por um profissional terceirizado. A própria Daniela Mazzilli ressalta que, atualmente, não existe uma “abundância” no mercado de profissionais capacitados para exercer as funções de preservação e manutenção de acervos cinematográficos e que os servidores atuais foram “forjados ao longo dos últimos anos”, recebendo treinamento e qualificação específica para exercer essas funções.

Daniela Strack também considera que os servidores atuais só conseguem exercer as funções porque participaram de todo o processo de reabertura do Capitólio ao longo dos últimos 20 anos. “Essas pessoas que garantem que a Cinemateca continue viva com continuidade. A gente tem visto a briga que está ocorrendo agora no Araújo Viana. Fizeram novamente o edital, uma outra produtora ganhou e agora existe uma guerra entre as produtoras. O espaço está muito sujeito a essa divergência entre as empresas. A gente também não sabe se essa OSC que ganhar vai estar interessada em seguir depois. É uma preocupação, porque a gente acha que tem que ser uma política de Estado, não de governo”, afirma.

Último debate público sobre a contratualização da Cinemateca Capitólio foi realizado em julho do ano passado | Foto: Luiza Castro/Sul21

Mobilização

Como reação à terceirização, um grupo de 150 personalidades da área cultural, como Kleber Mendonça, Paulo Betti, Jorge Furtado, Luís Fernando Veríssimo e diversas outras, assinou uma carta aberta endereçada ao prefeito Marchezan e ao secretário Alabarse  pedindo a interrupção do processo de contratualização e a abertura de espaços de diálogo sobre a política pública da cidade para a cultura.

Grassi, da Aamica, diz que vai levar a carta à Prefeitura e que pretende, concomitantemente, protocolar um pedido de audiência pública para debater a terceirização e colocar “todas as cartas na mesa para a população”. Além disso, a Aamica prepara para este sábado (8) um abraço coletivo em protesto e em celebração da Cinemateca. O objetivo é passar o recado para a Prefeitura de que o processo não será aceito passivamente.

“Não queremos só brigar de cara feia, mas mostrar que o Capitólio tem potencial para crescer ainda mais como um polo de cultura”, diz. “No momento em que nós estamos vivendo uma inversão completa da política cultural, um retrocesso, essa defesa do Capitólio também tem esse sentido. Ela é um ponto de apoio para política cultural e uma cultura mais integrativa, antidiscriminatória e isso é fundamental e para que a nossa cidade possa ter um poder público municipal que assuma a sua função pública democrática. O prefeito é eleito para administrar e não entregar, e isso está acontecendo em vários setores da cidade, na saúde, no mercado público. Eu acho que o Capitólio é também um ponto dentro dessa luta maior”, conclui.

Galeria de Fotos

Foto: Luiza Castro/Sul21
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