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17 de maio de 2019
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18:35

Divididas entre comer ou pagar o aluguel, famílias ocupam casarão na Cidade Baixa

Por
Sul 21
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Dez famílias ocuparam o imóvel que pertence à Prefeitura Municipal. Fotos: Carol Ferraz/Sul21

Annie Castro

“São pessoas que foram despejadas de onde moravam ou que precisavam escolher entre pagar o aluguel e comer”. Assim Alice de Oliveira define os moradores da Ocupação Baronesa, iniciada há cerca de dois meses em um antigo casarão na esquina das ruas Baronesa do Gravataí e 17 de junho, em Porto Alegre.

Ao todo, dez famílias, formadas por 20 adultos e 13 crianças, ocuparam no dia 28 de março o imóvel que pertence à Prefeitura de Porto Alegre e que estava abandonado. De acordo com Alice, que é uma das moradoras da ocupação, o espaço costumava ser utilizado por pessoas em situação de rua para consumo de drogas e despejo de objetos furtados. “Tinha infestação de ratos no pátio, foco de mosquitos da dengue. Os vizinhos contam que não podiam passar aqui na frente pra passear com os cachorros, que era inseguro. Eles tinham feito várias denúncias sobre a situação do lugar e nunca foi resolvido”, conta Alice, que também menciona que, em função da limpeza que as famílias estão realizando no espaço, a vizinhança está apoiando a permanência da ocupação.

Na tarde do dia 25 de março um incêndio atingiu o prédio, inutilizando o telhado e o segundo andar do imóvel, que é dividido em seis sobrados na parte da frente e mais outras três casas nos fundos. “Como antes usavam isso aqui como uma cracolândia, pegou fogo. Nisso a gente já tava se planejando pra vir pra cá. Lembro que eu e as outras famílias nos falamos preocupados de como íamos fazer a ocupação depois do fogo. Aí os guris vieram pra cá e começaram a limpar. O arquiteto veio também e disse que podíamos vir”, lembra Alice, que antes da ocupação vivia de favor na casa de uma amiga em Pelotas, mas veio para Porto Alegre para cursar Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Roger Henrique de Oliveira de Souza foi um dos primeiros a ir até o espaço e começar o processo de limpeza. “Durou uma semana o mutirão pra limpar, mas isso só jogando pros cantos a sujeira maior pra nós termos onde caminhar e ter acesso às casas”, lembra. Antes da ocupação, Roger morava em uma casa com a esposa, a filha de um ano e três meses e mais nove familiares. “Eu viva lá há 17 anos. E um dia, não sei como, apareceu alguém se dizendo o dono de lá e tudo isso por causa de uma assinatura que minha mãe deu uma vez”, conta ele.

A família de Roger foi despejada da casa em que viviam há 17 anos. Fotos: Carol Ferraz/Sul21

A irmã de Roger, Luma de Oliveira dos Santos, explica que sua mãe tinha sido responsável por alugar a casa em que viviam e que todos acreditavam que estava tudo certo com o imóvel. Com o aparecimento dos donos do lugar, foi dada uma ordem de despejo para os moradores, que tiveram 15 dias para sair. Roger conta que a família não tinha para onde ir e que seu cunhado, que é esposo de Luma, informou sobre o imóvel abandonado na rua Baronesa do Gravataí. “Ele me disse ‘tem esse espaço, vamos?’ e viemos. Não temos como pagar aluguel, se ficarmos um mês, dois meses, um ano aqui já ajuda”, afirma Roger. Desde o dia 28, as famílias de Roger e Luma integram a Ocupação Baronesa. “A gente tá aqui porque a gente é família e a gente precisa. Temos crianças”, diz Luma, que tem cinco filhos pequenos.

Adriana Fraga da Silva também ficou sabendo da ocupação em um momento de desespero. Ela e o esposo não tinham mais como sustentar o aluguel da casa em que viviam e a alimentação dos quatro netos pequenos. “Era 300 pila o aluguel, mas como meu marido ganha pouco porque trabalha por conta, ou a gente pagava o aluguel ou comia. Tem criança, então não pode morar na rua. Mas em compensação tu pagava ali o aluguel e não tinha o que comer, ficava um olhando pra cara do outro. Era leite, era fralda. Não tem o que fazer. Teve meses que a gente deixava de pagar o aluguel e a pessoa batia na porta cobrando”, lembra Adriana. Ela conta que, apesar de estarem vivendo na ocupação, ainda precisam pagar o mini mercado do bairro que moravam, onde às vezes conseguiam comprar fiado.

A família de Adriana está vivendo em uma das casas que existem no imóvel. Fotos: Carol Ferraz/Sul21

Luta para permanecer no imóvel

Na última terça-feira (7), a Prefeitura Municipal tentou realizar uma reintegração de posse no local. De acordo com Alice, um procurador municipal esteve no imóvel. “Ele nos disse que iriam nos levar para um albergue ou um aluguel social, só que a gente sabe que o aluguel social não existe mais porque olha quantas pessoas estão aí desalojadas, inclusive morando na rua porque não tem mais casa”, afirma.

Procurada pelo Sul21, a Procuradoria-Geral do Município (PGM) afirmou que, devido ao incêndio, o imóvel apresenta risco de desabamento, e que no último dia 10 foi ajuizada uma ação de reintegração de posse do imóvel. Segundo a PGM, o “juízo já se manifestou sobre o processo em decisão liminar, determinando que o imóvel seja desocupado em virtude dos riscos que apresenta”.

De acordo com Alice, na terça-feira o procurador ainda teria ameaçado retirar da guarda dos pais as crianças que estão na ocupação. “Ele chamou o Conselho Tutelar e disse ‘se vocês não vão sair, eu vou trazer o conselho para tirar as crianças de vocês porque elas estão em perigo aqui’. As meninas do conselho vieram, fizeram o relatório e saíram. Não contente, ele chamou a Fasc. Veio a Fasc e também fez o relatório e saiu”, conta. Alice afirma que como as famílias se negaram sair, foi cortada a água e a luz do imóvel. Desde então, eles estão recebendo doações de água da vizinhança. A PGM afirmou que está apurando os fatos sobre a atuação do procurador.

Alice milita na luta pela moradia há mais de dez anos. Fotos: Carol Ferraz/Sul21

De acordo com Roger, durante a visita na quarta-feira, o procurador ainda teria afirmado que eles não poderiam “estar em um prédio localizado em um ponto nobre da cidade, que vale um monte de milhões”. Para Alice, a tentativa em retirar as famílias se trata de uma questão de discriminação. “O procurador disse que o prédio já tem destino, mas eles não vinham aqui quando era uma cracolândia. Quando a gente ocupou eles decidem se mexer pra vir, mas não foi porque estão preocupados, é só porque eles acham que a gente não tem direito de morar em uma área nobre”, afirma ela.

Alice, que há mais de dez anos milita na luta por moradia, pontua que as populações negras, indígenas e periféricas que estão passando dificuldades precisam ocupar os espaços ociosos nos centros da cidade. “O que normalmente sobra pra nós da periferia é tu estar lá e ser jogado cada vez mais pra longe. A partir de 1950 começaram a levar o povo desses espaços centrais para a região onde hoje é a Restinga. Então, essa retomada de território feita pelo povo negro, também com passagem do povo indígena é também uma retomada ancestral. Eu, por exemplo, tenho sangue guarani, kaingang e negro. Então, se fomos retirados em 1950, agora em 2019 estamos retomando uma região que sempre foi pertencente ao povo negro”, afirma.

Luma de Oliveira está vivendo na ocupação com o marido e os cinco filhos pequenos. Fotos: Carol Ferraz/Sul21
Fotos: Carol Ferraz/Sul21
Fotos: Carol Ferraz/Sul21
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Fotos: Carol Ferraz/Sul21
Fotos: Carol Ferraz/Sul21

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