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30 de maio de 2019
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11:39

A obra que não termina: duplicação da Tronco engatinha em meio a disputa judicial para remoção das famílias

Por
Luís Gomes
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Trecho da duplicação ainda está longe de estar concluído | Fotos: Carol Ferraz/Sul21

Luís Eduardo Gomes 

Em 21 de junho de 2018, a Prefeitura de Porto Alegre anunciou que estava retomando as obras de duplicação da Av. Tronco. Iniciadas ainda em 2012, estavam previstas para a Copa do Mundo de 2014 e foram paralisadas em 2016, quando seus quatro trechos tinham apenas cerca de 30% executados. Quando da retomada das obras, a previsão de conclusão era em 2020. Quase um ano depois, avançaram, mas muita lentamente, e ainda permanecem negociações e disputas judiciais com famílias que moram em locais pelos quais o trajeto da avenida passa e precisam ser removidas. No final da tarde de segunda-feira (27), quando uma chuva caía na Capital, não se via sinal de pessoas trabalhando.

O aposentado José Raimundo Faschel Araújo, 78 anos, se instalou com a mulher e filha na região há 45 anos, quando ainda havia ranchos. Ele conta que foi uma das primeiras casas da rua. Lembra que havia apenas um comércio na esquina. O terreno era de propriedade privada, mas estava abandonado. Levou anos até que a questão fosse judicializada e, hoje, ele pede o usucapião da área. Araújo conta que a Prefeitura já o procurou em diversas oportunidades para tratar da utilização de parte dos fundos do terreno, onde deve passar um trecho da avenida e onde ele tem uma plantação, mas que não há negociações em aberto porque o processo de usucapião segue tramitando na Justiça.

Próximo à casa dele, na Rua Cruzeiro do Sul, há um imóvel de dois pisos que leva na fachada a marca do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), e deve ser removido. Apesar de solitária no trajeto que está com as obras em andamento, a família ainda não aceitou nenhuma proposta de negociação. Ao redor do imóvel, o que era para ser um canteiro de obras se converteu em um depósito de resíduos. A reportagem não conseguiu o contato dos moradores.

Casas foram marcadas para serem removidas pelo Demhab, mas algumas dezenas ainda permanecem de pé | Fotos: Carol Ferraz/Sul21

A avaliação de Araújo é que a retomada das obras “não mudou nada” na situação da comunidade. “Veio a Copa, foi a Copa e isso aqui está uma zona de guerra. Para sair de casa é um sacrifício. Eles trabalham um pouquinho ali, quando tu vê pararam, não fazem mais nada”, diz. A reclamação do aposentado é que não há um verdadeiro canal de diálogo aberto com  o poder público. “A Prefeitura não quer saber de diálogo. Não procura as famílias para dialogar. E o povo se acomoda, até que chega uma hora e eles dizem que tem que sair”.

A ideia original da Prefeitura ao incluir a obra no rol dos projetos de infraestrutura que contariam com recursos do governo federal em preparação para a Copa do Mundo de 2014 era duplicar a Tronco existente e fazer a interligação entre as avenidas Icaraí e Gaston Mazeron, envolvendo diversas vias da região conhecida como Grande Cruzeiro. Um trajeto de 6,2 km de extensão que funcionaria como uma alternativa de deslocamento na Zona Sul de Porto Alegre. Originalmente, a obra foi orçada em R$ 156 milhões e deveria incluir três pistas em cada sentido, corredor de ônibus, serviços de drenagem pluvial, iluminação, revestimento de passeios, plantio de árvores, sinalização horizontal e vertical e uma ciclovia.

Em resposta encaminhada à reportagem nesta quarta-feira (29), a Infraestrutura e Mobilidade Urbana (Smim) informa que os trechos 1 e 2 da nova Tronco estão com 35% de suas obras já executadas, mas ainda estão paralisados e com previsão de conclusão somente para julho de 2022, poucos meses antes da realização da segunda Copa do Mundo posterior ao mundial do Brasil. Segundo a pasta, essa etapa está aguardando a liberação de áreas para ser continuada nas proximidades da Av. Teresópolis. Já os trechos 3 e 4, retomados em junho de 2018, estão com 41% das obras executadas e conclusão prevista para julho de 2021.

Desde o início, um dos grandes entraves da obra foi a necessidade de remoção das 1.459 que moravam ou tinham comércio em imóveis pelos quais o novo trajeto deveria passar. A Prefeitura propôs algumas alternativas às famílias, um bônus-moradia no valor de R$ 52.340,00 — o que exige que elas achem uma casa à venda e a Prefeitura efetua a compra do imóvel com este valor –, o aluguel social de R$ 800 por mês ou um apartamento no Minha Casa, Minha Vida. Além disso, algumas famílias receberam indenizações pelas desapropriações. Inicialmente, 918 foram atendidas por essas opções.

O líder comunitário Lídio Santos, morador da Vila Maria, uma das comunidades que compõem a chamada Grande Cruzeiro, é um dos que permanecem no local. Ele diz que sua família começou a negociar com o governo municipal ainda em 2012, tendo optado pela alternativa do bônus-moradia. No entanto, conta que, na primeira rodada de negociações, não conseguiram achar nenhum imóvel pelo valor oferecido e a Prefeitura havia recusado a proposta que a família fez de juntar as indenizações de todos os seus membros para comprar um único terreno na Cruzeiro. “A gente nasceu aqui, morou aqui e queremos continuar aqui”, diz.

A ideia era facilitar o trânsito no Zona Sul, mas obras ainda são um transtorno para os moradores da região | Fotos: Carol Ferraz/Sul21

Com a retomada das obras, a Prefeitura atualizou os valores oferecidos para as famílias, com o bônus-moradia chegando a R$ 78.889,65, mas o aluguel social foi reduzido para R$ 500. Em janeiro deste ano, a Prefeitura anunciou que conseguiu junto à Caixa a liberação de R$ 31,3 milhões para a construção de três empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida que devem ser destinados a reassentar famílias já removidas. Ao todo, serão 356 unidades e a previsão de entrega era num prazo de até 24 meses. “Até hoje não tem nenhum tijolo colocado. Só está criando mato e lixo”, diz Lídio.

Outras 195 famílias estavam em processo de negociação com a Prefeitura pelo bônus-moradia. De acordo com o governo municipal, ainda restam 20 famílias que permanecem morando no trajeto da duplicação. São famílias que não aceitaram as alternativas propostas pela Prefeitura e o caso delas foi parar na Justiça. O Demhab destaca, no entanto, que a proposta do bônus-moradia continua valendo caso as famílias encontrem uma nova residência em Porto Alegre — o acordo só vale para a Capital. Lídio diz que, em reunião realizada na Cruzeiro com representantes do Demhab no último dia 20, a comunidade foi informada de que 65 famílias ainda residem no trajeto da duplicação.

Araújo fala que a pressão sempre foi grande sobre as famílias para que aceitassem acordos, sendo que muitas acabaram cedendo por verem que o valor da oferta era alto, e só depois acabaram se dando conta de que não conseguiriam mudar para uma realidade melhor do que aquela que tinham na Cruzeiro. “A grande maioria das famílias está arrependida”, diz.

Lídio diz que um dos entraves atuais para os moradores aceitarem a negociação é justamente a experiência das famílias que já negociaram com o Executivo municipal no passado. “A Prefeitura mandava para cá lideranças comunitárias para convencer as pessoas e eles diziam que ‘dava para comprar uma casa na praia, comprar uma casa decente’. Iludiram as pessoas. Na época, nós criamos um grupo chamado chave por chave para que as famílias entregassem a chave da casa antiga só com a chave da nova, mas a Prefeitura combateu fortemente o movimento e não tivemos muito apoio. As pessoas entregaram a casa e foram saindo. Tem uma família que entregou a casa, foi morar em Cidreira, mas não conseguiu emprego. Retornaram para a Cruzeiro e estão morando de aluguel. Eles tinham uma casa”, diz Lídio.

Lixo toma conta de um dos trechos que deveriam fazer parte da duplicação da Av. Tronco | Fotos: Carol Ferraz/Sul21

Outro agravante é o fato de que o aluguel social, uma das alternativas oferecidas, apresenta atrasos frequentes nos repasses pela Prefeitura. Além disso, os empreendimentos do MCMV jamais saíram do papel. Lídio é cético quanto à possibilidade deles chegarem a ser construídos um dia. “O Minha Casa, Minha Vida já estava congelado no governo Temer e agora parece que o Bolsonaro está acabando com o programa. Como eles vão fazer esse empreendimento?”, questiona.

Em janeiro deste ano, ele voltou a fazer a proposta para o Demhab de juntar os bônus-moradia, já atualizados para R$ 78 mil, de todos os membros da família, o que foi aceito. Contudo, a família ainda não conseguiu achar um terreno que comporte todo mundo. “Não é fácil. Mesmo juntando tudo, o que dá uns R$ 300 mil, a gente não está achando uma casa na Cruzeiro. O valor aqui é de R$ 500 mil para cima”, diz.

A família, composta por ele, a mãe e quatro irmãos, mora em um terreno comprado pela matriarca na Rua Silva Paes em 1988. Nesta semana, ele recebeu a intimação de um oficial de justiça de uma decisão de reintegração de posse. A Prefeitura alega que trata-se de uma área pública que foi invadida mais recentemente, mas o líder comunitário diz que há documentos de que trata-se de uma casa de religião de matriz africana que está no local desde o final dos anos 1990. “Temos o recibo de compra e venda”, diz.

Lídio diz que a Prefeitura está fazendo uma grande pressão sobre os moradores que ainda permanecem no local. “Eles estão tocando o horror nas pessoas, fazendo um filme de terror. Na realidade, eles querem retirar as famílias até o final do ano. Se não achar uma casa logo, estão ameaçando entrar com reintegração de posse”. Segundo ele, o que as famílias precisam é de tempo para encontrar um imóvel adequado. Lídio diz que o que os moradores remanescentes pedem é tempo. “Assim como estamos esperando desde 2011 a questão da obra e faltava dinheiro, que eles também nos deem tempo hábil para achar uma casa. Não é assim, da noite pro dia, arranjar uma casa”, diz.

Araújo foi um dos coordenadores da União de Vilas da Grande Cruzeiro, entidade criada nos anos 1970, mas que perdeu força posteriormente. Ele conta que os movimentos populares na região voltaram a se fortalecer em razão da remoção das famílias. Foram organizadas passeatas e lideranças comunitárias procuravam as famílias para esclarecê-las sobre os direitos que tinham. Contudo, ele diz que, à medida que a maioria dos moradores foi aceitando o acordo proposto pela Prefeitura, o movimento se desarticulou. “Mesmo os moradores que ainda não saíram não conseguem se articular, não aparecem em reuniões de associações”, diz.

Fotos: Carol Ferraz/Sul21
Fotos: Carol Ferraz/Sul21
Fotos: Carol Ferraz/Sul21
Fotos: Carol Ferraz/Sul21

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