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6 de abril de 2019
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12:00

Vila Nazaré organiza eventos culturais para reforçar sua permanência em área disputada

Por
Sul 21
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Vila Nazaré organiza eventos culturais para reforçar sua permanência em área disputada
Vila Nazaré organiza eventos culturais para reforçar sua permanência em área disputada
Obras de ampliação do aeroporto abriram período de incertezas para moradores da Vila Nazaré. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Giovana Fleck

Quando o Sul21 visitou a Vila Nazaré em 2017, uma das ruas estava alagada. O esgoto espesso saída de uma das valas e contaminava toda a extensão da calçada. Na época, a comunidade – vivendo em um espaço disputado próximo à Avenida Sertório – já somava anos de promessas da Prefeitura e resistência para permanecer no local.

“Ninguém fala nada sobre o que vai acontecer. Com esse sai-não-sai, a Prefeitura não investe mais nada na comunidade. O DEP (Departamento de Esgotos Pluviais) faz quatro ou cinco meses que não vem aqui, apesar dos vários pedidos que fizemos. A Smov e a CEEE também. Essa história da remoção começou em 2010. Mas essa conversa é mais antiga. Eu moro há 27 anos aqui. Tem gente que mora há 40 e fala que ela vem de longe”, relatou Julio Cesar Ortiz, presidente da Associação de Moradores da Vila Nazaré, à época.

Janete Santos da Luz tentava puxar parte do esgoto que invadiu sua casa quando o Sul21 foi até o local. Vendo que não conseguiria estancar o vazamento próximo a seu pátio, pegou uma enxada para tentar cimentar a área. “Estourou. Liguei pro DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto). Disseram que já tinham vindo. […] Não veio ninguém.”

Em 2010, com o anúncio da Copa do Mundo de 2014 a ser realizado no Brasil, a Nazaré passou a ser associada à palavra problema. Não por conta de todas as falhas estruturais e ausências de políticas públicas que dificultam as vidas dos moradores, mas por estar localizada em um espaço estratégico para a ampliação do Aeroporto Internacional Salgado Filho.

As dificuldades de articulação entre a Associação de Moradores da Vila Nazaré – com representações, também, no Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal e Defensoria Pública -, o Departamento Municipal de Habitação Urbana (Demhab) e o grupo alemão Fraport AG Frankfurt – ganhador da disputa para administrar o aeroporto – nunca conseguiram responder à dúvida das centenas de famílias da Nazaré: onde eles vão morar?

Pouco mudou desde então. O esgoto à céu aberto chegou a ser provisoriamente resolvido graças à uma estrutura montada pelos próprios moradores. No entanto,demorou mais de um ano até que a Prefeitura resolvesse, de vez, a situação. “Existe a tentativa de fazer com que a ideia de ‘solução’ cole. Essa narrativa cria a ilusão de que as coisas estão resolvidas, que a Nazaré vai ser reassentada. Mas é uma ilusão que faz com que as pessoas se esqueçam que ainda existem milhares de famílias lá sem saber para onde vão”, define um dos coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) Eduardo Osório.

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Segundo Osório, o MTST entrou como articulador no processo de mediação entre os moradores, o poder público e a administradora do aeroporto para pensar em novas soluções para o problema. Segundo Osório, para a maioria dos moradores, a situação ideal seria não sair da Nazaré. As opções oferecidas são escolher entre dois empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida ou indenização pelo imóvel que deixariam ali. Ainda assim, a situação de cada morador deveria ser analisada considerando suas individualidades. “As pessoas sabem que se forem para os empreendimentos, vão ter que lutar por trabalho, saúde, educação… São áreas onde isso não está estruturado”, afirma.

Tempo perdido

Associação de moradores da Vila Nazaré. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Em 2010, um cadastramento chegou a ser realizado contabilizando todas as famílias que moravam dentro da Nazaré. Com a demora para encaminhar as famílias para um destino definitivo, os dados ficaram desatualizados. Segundo o Demhab, muitos moradores saíram e novos entraram nesse meio tempo. “Muitos” e “poucos” são as palavras que delimitam quantidades nas notas emitidas pela assessoria de imprensa do Departamento. Até hoje, nenhuma atualização foi concluída.

Por conta disso, a Fraport contratou uma a empresa privada Itazi para realizar o levantamento. Em abril de 2018, o Sul21 publicou  que parte do trabalho foi feito com a presença da Brigada Militar. “Quando eles entram raivado (sic), eles entram quebrando tudo. Eles usam aquele fardamento e se provalecem”, disse um morador entrevistado na época. Segundo relatos, em abordagens às mulheres, os policiais usam termos como “vaca” e “vagabunda”.

A empresa também provocava os moradores com questionamentos considerados desnecessários e invasivos. Entre questões sobre renda potencial da residência e condição de emprego, estariam perguntas sobre dependência química, se há alguém “preso ou com medida socioeducativa nos últimos 12 meses” e “adolescente grávida ou com filho” na família.

Segundo Osório, esse levantamento foi concluído no início de 2019. As denúncias, no entanto, nunca foram levadas adiante. Segundo o Demhab, o levantamento feito pela empresa não pode ser considerado oficialmente. O Departamento, no entanto, não respondeu aos questionamentos sobre a demora de uma atualização feita pelo Município e se esse trabalho será retomado.

De acordo com a Fraport, o cadastro feito pela Itazi tinha o objetivo de identificar características específicas, além da quantidade de pessoas morando na área. Ainda assim, a empresa não elucidou o objetivo prático da ação.

Osório afirma que na terça-feira (02), uma assembleia convocada pelo Demhab ocorreu na Nazaré para explicar que o cadastro contratado pela Fraport não seria levado em consideração pelo poder público. Eles reforçaram a promessa de saída das cerca de 300 famílias cujas casas estão na exata área onde será construída a ampliação da pista do aeroporto. “Mas, no geral, o sentimento de desinformação permaneceu. Ninguém sabe quem fica e quem sai. É uma confusão”, diz o coordenador.

Alternativas

“A comunidade segue aqui. Segue em pé e lutando. O que se quer é condição melhor de vida”, define Osório. Ele conta que, há alguns meses, a Associação de Moradores recebeu como doação centenas de livros. A partir disso, começaram a organizar a construção de uma biblioteca, voltada para o incentivo da leitura entre as crianças e os jovens.

O espaço comunitário ganhou o nome ‘Tia Lila’, em homenagem à Roseli Nascimento, moradora que “sempre sorridente e amorosa, está disposta a ajudar a todas e todos” sendo a “conselheira dos mais jovens”. “Tia Lila faleceu em 2017, mas se manteve uma figura presente na comunidade”, afirma Osório.

A inauguração do espaço acontecerá no domingo (7) e integra um dos diversos eventos que a Associação tem promovido para buscar a conscientização e a união dentro da comunidade. Além da abertura da biblioteca, uma roda de conversa será realizada para alertar os trabalhadores sobre as mudanças propostas pelo governo Bolsonaro (PSL) com a reforma da Previdência. “A vida está acontecendo. Não podemos ceder à narrativa de apagamento da nossa existência”, enfatiza Osório.

Atualização – 06/04/2019, às 19h47

Após a publicação da reportagem, o Demhab encaminhou uma nota em que afirma que “está trabalhando com a comunidade e ouvindo as demandas diretamente dos envolvidos”. Segundo o Departamento, na primeira etapa de reassentamentos, terão prioridade as pessoas com deficiência, com dificuldades de locomoção e idosos. Além disso, serão identificados os comerciantes que querem manter os estabelecimentos nos dois novos empreendimentos. Ainda em abril, 128 famílias deverão ser transferidas para o condomínio Senhor do Bom Fim. Entre maio e o final de 2019, o que compõe a segunda etapa do processo, encaminhará mais 236 famílias ao Senhor do Bom Fim e 936 ao condomínio Irmãos Maristas – e fase final de construção. A nota informa que a Prefeitura trabalha para assegurar que as famílias tenham acesso às redes de saúde e educação nos dois empreendimentos.


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