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27 de abril de 2019
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20:55

Plano da Prefeitura para moradores de rua ainda esbarra em problemas antigos

Por
Luís Gomes
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Prefeitura lançou em 2018 plano com “início, meio e fim” para pessoas em situação de rua, mas número de beneficiados ainda é uma fração da população de rua de Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Em maio de 2018, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), apresentou o Plano Municipal de Superação da Situação de Rua, uma ação integrada entre os órgãos de saúde e assistência social do município para oferecer “início, meio e fim”, nas palavras do prefeito, à população de rua da Capital. O objetivo do programa era qualificar o atendimento já existente e ampliar as oportunidades de moradia e geração de renda. Passado quase um ano do anúncio, o plano tem tido dificuldades já enfrentadas por programas municipais anteriores, enquanto a Prefeitura avança no estabelecimento de parcerias com organizações sociais para qualificar o atendimento.

É possível dividir o Plano de Superação da Situação de Rua em três eixos: moradia, geração de renda e saúde. Os dois primeiros são financiados com recursos federais do Ministério da Justiça e garantem o pagamento de bolsas mensais, R$ 500 para a moradia e R$ 468 para quem atua em um programa de treinamento profissional. A crítica que se faz é que o alcance do programa ainda é muito limitado. Segundo informações da coordenadora do Plano de Superação da Situação de Rua, Silvia Mendonça, atualmente 31 pessoas e famílias foram beneficiadas pelo Moradia Primeiro, enquanto 50 já participaram ou participam do programa de geração de renda. Um estudo realizado em 2016 em parceria entre a Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre (Fasc) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apontou que Porto Alegre tinha pelo menos 2,1 mil adultos em situação de rua.

Uma das principais dificuldades encontradas pela Prefeitura para ampliar o programa é que poucos proprietários de imóveis se mostraram interessados em participar. Silvia diz que há 19 processos tramitando de pessoas em situação de rua interessadas em ingressar no Moradia Primeiro e que, para a maioria destes, já foram encontrados imóveis. Contudo, ela reconhece que, a partir desse contingente, a oferta de imóveis já passa a ser bastante restrita.

Ela diz que o número chegou a aumentar a partir de uma campanha publicitária lançada pela Prefeitura em dezembro, em parceria com uma agência e emissoras de televisão e de rádio, mas aponta que uma dificuldade encontrada é quanto ao perfil de imóvel disponibilizado. “Muitos são pensões, o que não atende a todas as pessoas. Temos muitos catadores interessados, com carrinhos, que não tem lugar em pensão. Isso faz com que eles prefiram aguardar mais um pouco por um imóvel que possa atendê-los”, diz. “O resultado ainda não é aquilo que a gente gostaria, ainda está longe, mas é um número significativo”.

Os participantes do programa recebem visitas quinzenais de técnicos envolvidos no Plano. Silvia diz que é possível ver casos de melhoria na qualidade de vida, mas que também há casos em que os beneficiados não conseguiram se adaptar ao programa. “Alguns conseguem, outros precisam de mais tempo. Até porque para alguns é uma vida inteira na rua, não é rápido para resolver. A gente entende que não é um fracasso eles recaírem de novo no vício, isso vai acontecer”, diz.

A assistente social Margareth Vieira, que trabalha no abrigo municipal Marlene, semanalmente participa de um encontro com pessoas em situação de rua e com integrantes de movimentos sociais que apoiam essa população. Ela avalia o Plano de Superação de Rua como uma ideia positiva, mas que precisa superar as dificuldades atuais. “Se começar a funcionar bem, é ótimo, mas a situação atual é difícil”, diz.

A crítica que a educadora social do MNPR (Movimento Nacional da População de Rua) Veridiana Farias Machado faz ao Moradia Primeiro é que, na verdade, não se trata de um projeto voltado para habitação social, mas sim ligado à saúde mental para pessoas que fazem uso de álcool e drogas. “Um programa efetivo de moradia teria que partir do Demhab (Departamento Municipal de Habitação), mas o Demhab some, não aparece, tem servido muito mais para colocar gente na rua com as remoções. Para nós, Porto Alegre ainda não assumiu a questão da moradia como problema para a população em situação de rua”, diz. Para ela, o programa Moradia Primeiro peca em tratar a questão da habitação apenas pelo viés do uso, sem viabilizar a possibilidade de uma solução permanente.

A educadora social avalia que o programa também precisa avançar na questão da geração de renda. Ela cita como um caso positivo para a população de rua o projeto de assinatura de pães Amada Massa, que nasceu a partir da articulação do movimento social com um grupo de moradores que participaram da Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, que por quatro meses ocupou um terreno sem uso da Prefeitura próximo à Praça do Aeromóvel. As famílias foram despejadas em julho de 2018, mas o projeto continua. “Hoje tem um monte de pessoas trabalhando nisso e pagando aluguel”, diz Veridiana.

Projeto Amada Massa tem ajudado na geração de renda de pessoas em situação de rua em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Problemas antigos

Édson José Souza Campos participava da ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares e ingressou no Plano de Superação da Situação de Rua após a remoção. Ele, que já possuía renda a partir do projeto Amada Massa e da venda do jornal Boca de Rua, entrou no eixo de trabalho, para atuar como um facilitador, isto é, receber treinamento na área de costura e estimular que mais pessoas em situação de rua procurem os programas municipais. Para isso, recebe uma bolsa mensal de R$ 468. Contudo, ele reclama de atrasos nos pagamentos. “A gente já está há quase dois meses sem receber salário. Eles falam, falam, falam bonitinho, mas não acontece”, diz.

Segundo Édson, 12 facilitadores que ingressaram no início do programa estavam, até o final da semana, com um mês e meio de atraso na bolsa. Ele usa esse recurso para pagar parte do aluguel de R$ 600 em uma pensão na Rua Sarmento Leite, onde está morando junto com a mulher, e expressa preocupação com o atraso. “O dono está dando uma chance, mas daqui a pouco não vai dar mais, porque tem gente na fila que vai entrar com dinheiro para pagar”.

Ele avalia que, até o momento, o Plano de Superação de Rua parece muito com outro programa, o aluguel social, inclusive em relação aos atrasos frequentes nos repasses aos usuários — a diferença é que o recurso do projeto anterior vem dos cofres municipais. “Já tiveram esses fracassos no aluguel social, de atrasar, não ter imóvel”, diz.

Édson avalia que uma das dificuldades do programa é que são poucos os imóveis e proprietários que se enquadram nas exigências da Prefeitura — não podem, por exemplo, estar em dívida com o IPTU — e que desejam alugar para a população de rua. Além disso, como o valor é baixo, muitas imóveis que poderiam abrigar famílias interessadas em participar do programa estão em regiões mais periféricas ou desvalorizadas da cidade, que acabam também por ser zonas de influência de traficantes, mas o programa não aceita que os imóveis inscritos estejam próximos destes locais. “É uma dificuldade de eles quererem que o proprietário tenha tudo certinho. Eles não querem também boca de tráfico. A galera às vezes prefere alugar uma casa que sai mais em conta por R$ 500, do que alugar uma peça por R$ 500, que é um espaço pequeno”, diz.

Quanto às vagas em pensões também há dificuldades, já que várias daquelas localizadas na região central de Porto Alegre, especialmente próximo à Rodoviária, também apresentam dívidas com o IPTU. Édson avalia que o programa é “muito bonito nas propagandas”, mas falta melhorar na prática.

A primeira família beneficiada pelo Moradia Primeira assinou o contrato de aluguel em 21 de agosto de 2018. Os primeiros contratos de aluguel de seis meses já foram concluídos e renovados. A ideia é que o benefício seja concedido por um ano, prazo que os beneficiários então já devem estar encaminhados para gerar renda para se sustentarem por conta própria. “Não fechou o primeiro ano de ninguém”, diz Silvia Mendonça. Ela destaca ainda que as experiências internacionais que inspiraram o programa, de países como Canadá e Portugal, tinham um prazo médio de dois anos de apoio para moradia.

A coordenadora diz ainda que nem todos os moradores de rua tem condições de alugar um imóvel. Aqueles que são pacientes da saúde mental, por exemplo, precisam de outro tipo de acompanhamento. Nesse sentido, ela destaca a abertura do Centro de Atenção Psicossocial a Céu Aberto, no Centro de Porto Alegre, para atender a usuários de álcool e drogas, o CAPS AD IV. Também salienta que a Prefeitura tem buscado realizar parcerias para qualificar o atendimento no Centro Pop I e no Serviço Residencial Terapêutico (SRT). “Num conjunto como um todo, eu vejo que muitos movimentos foram feitos para dar suporte para quem é caso de moradia e para quem é caso de outro tipo de atendimento. O plano está pensando em vários perfis”, diz.

Prefeito Marchezan fala na inauguração do Centro Pop I sob a administração da associação Ilê Mulher | Foto: Joel Vargas/PMPA

Parceirizações

Nas últimas semanas, a Prefeitura anunciou algumas medidas de ampliação das redes de acolhimento e atendimento a pessoas em situação de rua por meio de parcerias com organizações sociais sem fins lucrativos, responsáveis pela gestão dos espaços que antes ficava a cargo do município. No dia 18 de abril, a Associação Cultural e Beneficente Ilê Mulher passou a administrar o Centro Pop I, espaço destinado ao atendimento diurno de pessoas em situação de rua, no qual eles recebem lanche, podem tomar banho, lavar roupas e, se desejarem, ser encaminhados para outros serviços da rede de assistência social. Na sexta-feira (26), foi inaugurado o Residencial Inclusivo, voltado para o acolhimento de jovens e adultos com deficiência, no bairro Restinga Velha, uma parceria com o Instituto Pobres Servos da Divina Providência (IPSDP).

Veridiana reconhece como positivo o fato de que a Prefeitura cumpriu a promessa de ampliação da rede CAPS, que era uma das propostas originais do Plano de Superação da Situação de Rua. “Os CAPS sempre foram uma bandeira do movimento, porque eles estão dentro dos bairros. A gente não é favorável às comunidades terapêuticas porque isolam as pessoas e quando elas voltam para a realidade, acabam voltando para a rua”, diz. Por outro lado, diz que há um crescente lobby no Brasil e no Rio Grande do Sul pelo fortalecimento de comunidades terapêuticas, em geral ligadas a grupos religiosos e que não seguem normas nem do Sistema Único de Saúde (SUS) nem do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Em 2018, o Conselho Federal de Psicologia divulgou um relatório feito a partir da inspeção de 28 comunidades terapêuticas que aponta que em todos os locais visitados “foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos”.

Ela também expressa preocupação a respeito das parceirizações desenvolvidas pela Prefeitura, que devem ser estendidas no futuro inclusive para a gestão dos abrigos municipais, que fazem o acolhimento noturno de pessoas em situação de rua. “O que nos preocupa sempre com as terceirizações é a desresponsabilização do estado com a política pública, os vínculos frágeis dos trabalhadores com grande rotatividade, quando se trabalha com gente em vulnerabilidade. Imagina você começar a fazer uma terapia e daqui a pouco muda o terapeuta e você tem que vincular tudo de novo com outra pessoa”, diz.


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