Cidades
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1 de março de 2019
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17:37

Projeto garante acesso social à água para famílias no Pampa do RS

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Sul 21
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Tecnologia utilizada no Nordeste foi adaptada com sucesso para as necessidades de famílias assentadas no Sul do país. (Foto: ICPJ)

Por Marcos Antonio Corbari (*)

A região da Campanha, no RS, tem sido afligida ano após ano com prolongados períodos de estiagem. Trata-se de um intercurso climático que se mostra reincidente em todo grande espaço do Bioma Pampa, em especial nos locais onde há maior degradação ambiental. Ali, muitas famílias tem sofrido com a escassez de recursos hídricos, sendo inclusive privadas de condições ideais de acesso à água para o consumo humano. A equipe técnica do Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ), desafiada pelo Consórcio Público Intermunicipal de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental da Bacia do Rio Jaguarão (CIDEJA), buscou exemplos no Nordeste do país e trouxe de lá a experiência de uma tecnologia social de acesso à água.

Trata-se de Cisternas construídas pelo sistema de placas, utilizadas para captação de água da chuva e mantendo capacidade de até 16 mil litros. Até o momento já foram concluídas 44 unidades, produzidas coletivamente, no município de Candiota, com a aplicação do sistema de placas. “O objetivo geral dessa tecnologia social é proporcionar o acesso à água de qualidade e em quantidade suficiente para o consumo humano às famílias de baixa renda e residentes na zona rural”, explica o coordenador do ICPJ, Frei Sérgio Görgen. Além de garantir água suficiente para prover as necessidades imediatas das famílias beneficiadas, o dirigente destaca ainda o aspecto pedagógico do procedimento de construção, onde os beneficiados participam ativamente do processo, ajudando na fase inicial da construção e depois assessorando os operários em suas necessidades diárias.

Para Görgen, cada família que passa a contar com uma cisterna instalada junto à sua unidade habitacional, tem condições para enfrentar com dignidade o período de estiagem, minimizando os riscos à que ficam expostos: “Espera-se que as famílias beneficiadas possam melhorar suas condições de vida, facilitando o acesso à água de qualidade para consumo humano, com impacto direto sobre a saúde e a segurança alimentar e nutricional”. Conforme explica o diretor do ICPJ, cada família recebe ainda acompanhamento social, capacitação e formação para a gestão da água.

Interesse público garante projeto

Para o prefeito de Candiota e presidente do CIDEJA, Adriano Castro dos Santos, a expectativa para ver o projeto sendo efetivado era grande. “Sempre foi um desafio para a região buscar alternativas para abastecimento de água da população”. Conforme explicou, a área de abrangência do consórcio está localizada em um ponto geográfico castigado seguidamente com estiagens prolongadas: “Nós estamos em uma região que sofre com secas cíclicas, com períodos prolongados sem chuvas de tempos em tempos, levando grande parte da nossa população a sofrer intensamente com a falta de água”, relembrou. “Hoje temos só a agradecer às equipes de operários que tem se dedicado às construções das cisternas e ao Instituto Cultural Padre Josimo que se empenhou em pesquisar, adaptar e desenvolver a técnica de construção da maneira mais adequada aos nossos municípios”, arrematou.

Água de qualidade e com abundância, para garantir qualidade de vida digna para os assentados no Pampa. (Foto: ICPJ)

Conforme explicou o prefeito, tão importante quanto disponibilizar a estrutura da Cisterna e os equipamentos para acesso e tratamento da água para consumo, são as atividades de formação e informação que os beneficiados recebem. “Assim se passa a compreender a respeito da preservação dos recursos hídricos, procedimentos adequados para a utilização da água na propriedade e cuidados necessários para manter a água armazenada na cisterna sempre dentro das melhores condições de qualidade para ser consumida pela família toda”, completou.

Cisternas fomentam transformação social

O técnico do ICPJ, Sérgio Ferrarez, que coordena uma das equipes responsáveis pela construção das Cisternas, expressou a satisfação em participar de um programa que ao mesmo tempo em que oferece alternativa de trabalho para ele e seus companheiros, viabiliza uma garantia a mais de qualidade de vida para as famílias beneficiadas. “A gente sabe o quanto as pessoas aqui na região sofrem quando vem a seca, então é uma satisfação muito grande poder participar e ajudar com nosso trabalho para que todos tenham acesso garantido a água com abundância e boa qualidade”, explicou. Muitos dos beneficiados, conforme explicou Ferrarez, sequer tem acesso a poços ou redes de água, tendo que subtrair de açudes até mesmo a água para consumo da família. “Com a cisterna ao lado da casa, essas famílias vão estar muito bem servidas, podem ter certeza disso”, concluiu.

O projeto pioneiro está em plena execução e teve a primeira etapa concluída há cerca de um mês, finalizando o lote de 44 unidades inicialmente previstas. Mais 20 unidades devem estar concluídas nos próximos dias, já integrando a segunda etapa da ação. A efetividade e viabilidade do processo, que recebeu investimentos do Governo Federal através do Ministério da Cidade, já estão comprovadas. Nesta etapa ficou demonstrada a eficácia do processo, otimizando o investimento de recursos públicos ao viabilizar uma infraestrutura de baixo custo e alta eficiência. Conforme relatou Görgen, o sistema já poderia ter sido implantado na região há mais tempo, porém houve resistência e desconfiança de órgãos vinculados ao governo estadual passado, quanto à adequação da tecnologia que inicialmente foi desenvolvida visando atender as necessidades do povo nordestino.

Um “reservatório” de água, educação e informação

O projeto não prevê apenas a construção da cisterna, mas sim todo um processo pedagógico que vai desde a conversa inicial onde se identifica as condições e necessidades da família, até os procedimentos de manejo da água, de modo que se preserve a qualidade do volume armazenado e se possa otimizar de forma racional sua utilização. O planejamento da obra prevê desde a escolha do local ideal onde será escavado o solo, fabricação das placas e caibros, levantamento das paredes, montagem da cobertura e a instalação do sistema de captação.

Água de qualidade e com abundância, para garantir qualidade de vida digna para os assentados no Pampa. (Foto: ICPJ)

A técnica do ICPJ, Lara Rodrigues da Silveira, que atua junto às famílias conduzindo o processo educativo e formativo ressalta como esse procedimento se desenvolve: “São dois processos, o primeiro é de informação e fica mais voltado aos procedimentos que os beneficiários devem ter para com a utilização da cisterna, funcionamento, armazenamento, limpeza, etc. O segundo é de orientação, a respeito do uso da água, tratamento, melhores procedimentos para que seja construído conhecimento e conscientização para utilização da água para a vida”. As atividades de educação e informação são realizadas junto a todas as famílias, através de oficinas práticas, para que cada pessoa envolvida no processo esteja plenamente capacitada para garantir a melhor utilização da estrutura e equipamentos.

Entre as vantagens apontadas pela equipe técnica do ICPJ, além do armazenamento de água com boa qualidade para o consumo humano e baixo custo para o poder público, está o fato de o reservatório ficar protegido da evaporação e de contaminações, proporcionando água de qualidade e em localização próxima da casa dos beneficiários. O projeto contempla a construção da cisterna – que fica parcialmente enterrada ao lado da unidade habitacional -, a instalação de calhas coletoras da água da chuva junto ao telhado, um sistema intermediário de limpeza que garante que o primeiro volume de precipitação que limpa o telhado não se misture com a água potável, uma bomba manual de sucção desenvolvida pela própria equipe do ICPJ e um filtro de barro onde são aplicadas pastilhas de cloro para o tratamento final da água a ser consumida pela família.

Visando a partilha de saberes, o projeto também contemplou a impressão de folders e cartilhas explicativas, para que se possa ampliar e compartilhar a experiência do ICPJ e CIDEJA até outras localidades que estejam expostas às mesmas condições climáticas. Até o momento foram investidos R$ 193 mil de um recurso previsto de R$ 1 milhão. Além de Candiota, outros municípios do consórcio poderão ser beneficiados.  No total serão construídas 283 cisternas.

Água potável é conquista para assentados

Presente há 30 anos na região, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) é testemunha ocular das transformações sociais que a instalação de camponeses e camponesas assentados da reforma agrária trouxeram para a Campanha do RS, bem como as dificuldades que enfrentaram desde a sua chegada. Atualmente estima-se que sejam em torno de 1,8 mil famílias em 52 assentamentos nos municípios de Hulha Negra, Candiota e Aceguá. Juntamente com estes, somam-se os trabalhadores egressos das antigas fazendas, agregados e quilombolas que resistiram ao tempo, às dificuldades do clima e a ausência de políticas públicas de fomento que solucionassem problemas graves, entre os quais a falta de água potável tem destaque.

A água que antes faltava para beber, agora já tem até excedente a ser aproveitado pelas crianças em suas brincadeiras. (Foto: ICPJ)

– A maior parte dos lençóis subterrâneos podem ser acessados, mas vertem água salobra, imprópria para o consumo humano -, explica Lara Silveira . Os cursos de água, açudes e reservatórios na superfície, por sua vez, são sujeitos aos períodos de seca, além de não contemplarem acesso a todos os que de fato tem necessidade. Tal situação faz com que não seja surpresa encontrar a região fronteiriça entre Brasil e Uruguai o mesmo tipo de caminhões pipa que percorrem as regiões mais áridas do nordeste para levar água até os habitantes locais.

A importância desse projeto para a região é destacada pelo assentado de Hulha Negra, Ildo Lemes da Silva Pereira, integrante da direção nacional do MST: “Proporcionar aos assentados a alternativa de uma cisterna, significa construir um instrumento para sua manutenção no lote, é um incentivo para produzir e garantia da qualidade de vida da família”. Relembrando a grande seca que atingiu todo o bioma Pampa em 2009 e a reincidência em 2016 e 2017, ele destaca que já foi possível buscar recursos para a construção de redes de água, mas que ainda se está muito distante do número ideal de beneficiados por esse tipo de ação.

– A verdade é que nem todos os assentamentos conseguem ter acesso a água -, aponta Pereira. “O projeto vem em hora boa, a direção do MST apoia e torce para que possa ser ampliado, viabilizando um número cada vez maior de cisternas para as famílias que mais precisam”. Para o dirigente sem-terra, o momento é ideal para garantir água potável, uma vez que novos períodos de estiagem não devem tardar. “Nossa experiência aqui, desde os primeiros assentados, é de que a cada ciclo de dez anos temos apenas três em condições ideais de chuva”, explicou.

O depoimento é de dona Flávia da Luz, residente na comunidade de Companheiros de João Antônio, município de Candiota. “Não precisava ser muito grande a estiagem, a água raleava e a gente tinha que bombear do açude para tomar e fazer comida”, relembra.  “Hoje é diferente, a água que fica na cisterna é boa, nós usamos dela para todas as necessidades da família”, conta a dona de casa. “Esse projeto nem tem muito o que dizer de tão bom que é, mudou a vida da gente!”, arremata. Casos como o de dona Flávia somam-se às centenas na região, ficando famílias inteiras submetidas por longos períodos ao consumo de água imprópria ou ao alcance dos programas sociais que levam o suficiente para a sobrevivência em caminhões pipa.

Não muito longe dali, outra assentada beneficiada, relembra de como era antes e contrasta do momento atual, onde o reservatório novo já está em uso pela família. Cleusa Peres da Silva, de Conquista do Cerro, também município de Candiota, diz que “água é tudo, principalmente para a gente que já sabe como é passar necessidade”. A lembrança recente dela remete a última estiagem, quando a família não teve água para si nem para o trato dos animais, prejudicando também a produção de leite que empreendem no lote. “A gente até custou a acreditar que o projeto fosse acontecer e fosse tão rápido, hoje nós usamos a água da cisterna para todas as nossas necessidades dentro da casa, fazemos o tratamento direitinho como o pessoal do Instituto ensinou e temos essa água boa que vocês estão vendo aqui”, descreve com alegria ao alcançar um copo de água limpa, pura, para a reportagem no final da visita.

Famílias de outros municípios participantes do CIDEJA  já buscam informações de como podem participar deste projeto já que também sentem as mesmas necessidades.

(*) Jornalista (ICPJ/MPA/BdF-RS/Rede Soberania)


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