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23 de fevereiro de 2019
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11:43

Não vai ter carnaval no coração da Cidade Baixa: Novas regras da Prefeitura mudam local de saída do bloco Maria do Bairro

Por
Sul 21
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Saída do bloco em 2018, com foliões chegando a lotar ruas do entorno, como a João AlfredoFoto: Ricardo Stricher/Divulgação

Giovana Fleck

No verão de 2007, um grupo de amigos estava angustiado com a falta de vida das ruas de Porto Alegre. Carnaval de rua? Só no Rio de Janeiro. “Por quê? Começamos a nos questionar sobre os motivos que deixaram a cena do carnaval tão empobrecida por aqui”, conta Zeca Brito. Ele lembra dos encontros, na rua Sofia Veloso, no centro da Cidade Baixa. Os amigos eram, em sua maioria, recém-formados. Em comum, compartilhavam o trabalho na área cultural, o vínculo com a rua e o tédio. “Todos fazíamos arte, mas o que fazíamos pela cidade?”, reflete Brito.

Na tentativa de concretizar ideias e estabelecer vínculos com a vizinhança, surgiu um bloco de carnaval. Chamaram de Maria do Bairro. “Tentamos humanizar a rua. E deu certo. A primeira saída tinha algumas centenas de pessoas. As últimas, já reuniram mais de 250 mil.” Depois de 13 anos de bloco, Brito se define como carnavalesco. “Acredito que existam certas ‘utopias relacionais’, sabe? São as ideias que nos motivam. Vivemos cercados por espaços condenados – seja pela violência, pelo descaso, pelo domínio da iniciativa privada… Cabe ao cidadão estabelecer essas ‘microutopias’, esses espaços de convivência.”

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Em 2019, o enredo do Maria do Bairro contará a história de Sofia Veloso. O grupo que coordena o evento mora, em grande parte, na rua que homenageia a abolicionista. Todas as 12 edições do bloco foram realizadas na Sofia Veloso. No entanto, em 2019, o bloco não passará perto dos casarões históricos.

“Foi uma decisão da prefeitura”, afirma o carnavalesco. Segundo Brito, para colocar um bloco na rua, é preciso de, pelo menos, três meses de organização para pensar na artística como um todo. Fora isso, a burocracia inclui a permissão do município, a busca por iluminação e a instalação de estruturas básicas como banheiros químicos. “De quatro em quatro anos, mudam os gestores. Mas o sistema muda todos os anos.”

Quem sou eu?
Me diz, pra onde eu vou.
Sonho meu…
É a Maria na avenida meu amor.

Chegou a nossa bateria
Que veio de longe exaltar
Todas as belezas naturais
maravilhas da terra e do mar.

A cultura, nossa própria natureza
Digo isso com a certeza de que a vida vai mudar
O homem por ganancia e por riqueza
Destruiu nossas belezas, mas agora vai pagar…

Hecatombe, cataclisma, alto astral.
É a Maria do bairro no carnaval!
Ver a Sofia explodindo é genial.
Apocalipse now!

Perda de identidade

O Carnaval de 2019 acontecerá por conta de dois editais abertos no final de 2018 que, depois de reuniões com as escolas e blocos, conseguiram estruturar uma base mínima para organizar os eventos culturais. A empresa Impacto Vento Norte Produções Técnicas foi a vencedora da disputa do Pregão Eletrônico para realizar o Carnaval de Rua de Porto Alegre 2019.

O lance vencedor de outorga a ser paga ao município foi de R$ 50 mil. Uma solenidade chegou a ser realizada no Paço Municipal, onde o prefeito Nelson Marchezan Jr. reafirmou que a festa deste ano não terá nenhum recurso oriundo dos cofres públicos. De acordo com as regras definidas em audiência de conciliação na 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, no mês de dezembro de 2018, o Carnaval no bairro Cidade Baixa será realizado nos dia 2 e 5 de março.

“Tentamos humanizar a rua. E deu certo. A primeira saída tinha algumas centenas de pessoas. As últimas, já reuniram mais de 250 mil”, explica Zeca Brito. Foto: Divulgação/Bloco Maria do Bairro

Durante as negociações, no entanto, chegou-se a cogitar não realizar o carnaval na Cidade Baixa. “O Maria do Bairro é um bloco de rua, que nasceu numa rua específica. Esse ano, vamos ter que descobrir o sentido que ele tem fora da Sofia Veloso”, diz Brito. Depois dos dois lados cederem, ficou acordado que o bloco acontecerá na Praça Garibaldi, local histórico para o samba de Porto Alegre pela proximidade com o Areal da Baronesa e a antiga Ilhota. “Mas o coração da Cidade Baixa não comporta mais o carnaval de rua”, lamenta.

Brito questiona o modelo escolhido pelo poder público. “É algo que movimenta muitos recursos entorno da própria estrutura – mas é mal explorado.” Segundo ele, em 2018, o carnaval expôs o limite das proporções que a festa chegou em Porto Alegre. Desde o surgimento do Maria do Bairro, diversos outros blocos se organizaram. Hoje, são mais de 50. “Se paga IPTU, impostos de todos os tipos, e não existe cultura na rua, não existe entretenimento. Isso justifica a quantidade de blocos, são as pessoas se empoderando da produção cultural.”

História da rua

Esquina da rua Sofia Veloso, no bairro Cidade Baixa.  Foto: Guilherme Santos/Sul21

A rua Sofia Veloso consiste em uma travessa pequena em formato de “L” que conecta a República e a Lima e Silva. Além do formato incomum, é uma das duas únicas vias da Cidade Baixa que levam nomes de mulheres.

Em vida, Sofia era descrita como uma personagem igualmente incomum. “Era uma mulher com hábitos libertários, era independente. Saía sozinha na carruagem, saía sozinha à noite. Era conhecida como excêntrica”, conta Britto, que contou com a ajuda do jornalista Paulo Gasparotto para perfilar a personagem e escrever o enredo do bloco.

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O Guia Histórico de Porto Alegre, que registra verbetes e traça a narrativa dos bairros da capital, descreve Sofia como uma ativista abolicionista e integrante do Centro Abolicionista da cidade. Seu nome, no entanto, não é visto entre as lideranças do movimento, composta por homens. Sendo mulher, foi relacionada à filantropia e reformas sociais. “Sabíamos que ela tinha um discurso muito inclusivo. Na pesquisa, por exemplo, descobrimos que ela não estabelecia uma hierarquia entre ela própria e seus empregados”, conta o carnavalesco.

Sabe-se pouco sobre sua história, porém, Sofia foi responsável por deixar os casarões que ainda estão na rua que lava seu nome para a Sociedade Humanitária Padre Cacique, responsável pelo asilo de mesmo nome. Sofia faleceu em, 1930, sem herdeiros.  Estima-se que ela haveria doado o terreno para o asilo e, alguns anos depois, o então prefeito José Montaury mandou construir as casas, para que a renda de aluguéis fosse direcionada para o Padre Cacique. Essa situação mantém-se até os dias de hoje.

As razões que a levaram a doar o terreno para o Asilo, porém, não são conhecidas. “O incrível é que ela doou as casas para a cidade, não para seus herdeiros”, aponta Brito. “No sentido mais alegórico, era a dona da rua que decidiu tornar tudo, de certa forma, público.”

Carnaval 2019

Brito conta que, em determinado momento, os cerca de 20 membros da organização acharam que o bloco não sairia. “Não aceitamos ir para a Orla [do Guaíba].” Assim, organizaram um evento fechado no bar Opinião para não perder o trabalho realizado ao longo do ano. No sábado (23), o bloco se apresentará a partir das 23h, em formato de baile no espaço fechado.

No entanto, com o avanço das negociações, a saída oficial acontecerá no dia 9 de março, a partir das 15h, na praça Garibaldi. Além disso, no domingo, 17 de março, será realizado o Enterro dos Ossos, às 11h, junto ao Monumento do Expedicionário, no Parque Farroupilha.

“Me parece necessário que o artista proponha encontros. Temos que entender que as pessoas são mais parecidas do que diferentes. Num mundo onde tudo se polariza, o carnaval é a proposta do encontro”, define Brito.


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