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17 de janeiro de 2019
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18:53

Carnaval de Rua: ‘A Prefeitura quer que os blocos independentes saiam vestidos de coelho da Páscoa’

Por
Luís Gomes
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Prefeitura abriu nesta semana editais para a organização do Carnaval de rua de 2019 | Foto: Guilherme Santos

Luís Eduardo Gomes

Após anos de disputas envolvendo moradores, blocos, Prefeitura, Ministério Público, Brigada Militar e outros interessados, o Carnaval de Rua de Porto Alegre parece ter encontrado um formato em 2019 que poderá ser seguido nos próximos anos. Desde a última terça-feira (15), os blocos da cidade podem se inscrever no chamamento público para desfilarem no Carnaval de rua oficial da cidade. A medida representa uma demanda antiga dos blocos, mas pontos do edital geraram questionamentos entre os blocos independentes, isto é, que não irão aderir ao evento oficial e só poderão desfilar em datas distantes do feriado de Carnaval.

O Carnaval de rua da Capital passou por uma explosão a partir de 2014, com o surgimento acelerado de blocos e de desfiles – chegou-se a ter 19 datas na Cidade Baixa -, mas com pouca estrutura oferecida pelo município, então sob gestão de José Fortunati (PDT, hoje no PSB). Em 2015, a associação de comerciantes do bairro assumiu a responsabilidade de fazer a contratação da estrutura mínima exigida, como instalação de banheiros químicos, contratação de ambulância, segurança privada, etc. O grande número de pessoas atraídas pelos desfiles nesses anos, no entanto, gerou uma série de reclamações entre os moradores do bairro com relação a barulho, lixo e de outros resíduos deixados pelos foliões após as festas.

Em 2016, por meio de um processo de dispensa de licitação, a Prefeitura contratou a produtora Austral para organizar o evento, o que gerou reclamações de blocos que alegaram que a empresa restringiu as saídas às entidades que lhe interessavam. Com a troca de governo, em 2017, a gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) cortou os recursos para o Carnaval de rua, assim como fez com o das escolas de samba, e repassou para os blocos a responsabilidade de arcar com as exigências de estrutura, o que levou as entidades a recorrerem a financiamentos coletivos ou se juntarem a produtoras para arcar com os custos. Situação que se repetiu em 2018. Nestes anos, com a mediação do Ministério Público na disputa entre moradores e blocos, diminuíram as datas de desfiles na Cidade Baixa e outros pontos da cidade foram priorizados para receber a festa, como a Orla do Guaíba.

Carnaval na Cidade Baixa será restrito a blocos que comprovarem origem e tradição no bairro | Foto: Divulgação/PMPA

Em 2019, uma nova mudança. A organização do Carnaval de Porto Alegre será feita por meio de dois editais lançados na última sexta-feira (30). O primeiro é um chamamento para os blocos interessados a em participar dos até 30 circuitos previstos para a região central da cidade e outros oito em bairros mais afastados do Centro, que ocorrerão nos finais de semana e feriados entre 16 de fevereiro e 24 de março, das 8h às 21h. Quanto à Cidade Baixa, apenas os blocos que comprovarem ligação histórica poderão desfilar no bairro.  O segundo edital busca escolher a empresa que irá organizar o Carnaval e financiar a estrutura – como banheiros químicos, sinalização para os bloqueios do trânsito e ambulâncias – em troca da possibilidade de explorar comercialmente, como a venda de bebidas, e os espaços de publicidade. As inscrições no edital abriram na última terça-feira (15) e vão até o dia 25.

Leonardo Maricato, secretário-adjunto da Cultura, diz que a abertura do chamamento público foi uma demanda dos blocos para dar mais transparência organização do evento e ao processo de escolha de quem vai desfilar. Segundo ele, o formato escolhido foi baseado em editais de outras cidades, como São Paulo, Rio Janeiro e Belo Horizonte. “Claro que fizemos adaptações ao Carnaval de Porto Alegre, mas acompanhamos os carnavais bem-sucedidos”, diz.

O advogado Ian Angeli, integrante do bloco Turucutá e ex-representante da Liga das Entidades Burlescas da Cidade Baixa, diz que os editais eram um pedido antigo da comunidade carnavalesca à Prefeitura. “É uma defesa nossa a realização de editais e acreditamos que esse seja o caminho adequado”, diz.

Uma novidade considerada importante para Ian é a possibilidade dos blocos também explorarem espaços de patrocínio, o que não acontecia quando produtoras assumiam os custos do desfile de forma individual e restringiam os patrocinadores aos seus parceiros. Agora, conforme previsto em edital, cada bloco poderá exibir o logo de seus patrocinadores próprios na lateral do trio elétrico, em estandartes e em camisetas, enquanto a empresa organizadora poderá explorar espaços nas laterais do circuito e em uma parte do trio elétrico.

Ian Angeli, representante do Turucutá | Foto: Guilherme Santos/Sul21

No entanto, ele aponta alguns problemas no chamamento público lançado pela Prefeitura. O primeiro seria quanto ao tempo exíguo para a inscrição dos blocos.  Outro problema que ele enxerga é quanto aos critérios de seleção para os blocos, que será feito por um sistema de pontuação que valoriza questões como a apresentação de um CNPJ e de documentos que comprovem o histórico cultural das entidades burlescas. “Tem blocos tradicionais que não têm CNPJ. E é difícil conseguir comprovar desfiles antigos. Vai fazer isso por fotografia? Como vai provar que a foto é daquele ano?”

Coordenador do Carnaval de rua de Porto Alegre em 2015, Maricato não fazia parte da gestão Marchezan até o ano passado, quando retornou e assumiu a coordenação do evento. Ele concede que, por se tratar do primeiro ano, o edital pode apresentar falhas, mas diz que a ideia é que esse primeiro possa ser aperfeiçoado e servir de modelo para os próximos anos. “O Carnaval tem que ser agradável para os blocos e para os foliões. Essa construção se dá de forma coletiva, então a ideia é marcar esse edital como alicerce inicial de um processo de construção”, diz.

A respeito do curto espaço de tempo para a manifestação de interesse dos blocos, Maricato diz que, desde dezembro, a Prefeitura já vinha conversando com os blocos e avisando de que um edital estava em construção, também para que eles pudessem se preparar. “Como é tudo muito novo, o pessoal se assusta, mas estamos tentando fazer tudo da forma mais transparente e participativa possível para não excluir ninguém”, diz.

Blocos independentes

Pelos cálculos de Maricato, a cidade tem hoje entre 40 e 50 blocos, mas nem todos desfilam anualmente e, a cada carnaval, novos blocos são criados, enquanto outros encerram as atividades. Há, porém, uma parcela significativa de blocos na cidade que não tem interesse em se juntar a produtoras para realizar os seus desfiles. São os chamados blocos independentes, como o Turucutá e a Laje.

A principal crítica de Ian é justamente quanto a situação dessas agremiações. O edital determina que elas, mesmo não aderindo ao evento oficial, devem realizar um licenciamento junto a Prefeitura e limita os seus desfiles aos períodos entre 26 de janeiro até 10 de fevereiro e 30 de março até 14 de abril, não abrindo espaço para que sejam realizados na Cidade Baixa. Determina ainda que toda a estrutura e organização dos eventos é de responsabilidade dos blocos, seguindo os moldes do desfile oficial.

O Turucutá, por exemplo, planejava manter a data que tem saído nos últimos anos, próximo ao dia 17 de março, aniversário de criação do bloco. “Esse ano, a gente só poderia sair no dia 30 de março. Como o edital está construído, eles querem que os blocos independentes saiam vestidos de coelho da Páscoa”, diz . “Não dá para você querer que o Carnaval acabe dia 5 de março e os blocos independentes só possam sair depois do dia 30. E a eterna crítica que o RS tem o Carnaval mais longo do País? Isso apenas reforça isso”.

Otávio Pereira, presidente da Liga de Blocos Descentralizada, que reúne pelo menos 16 blocos, avalia que o edital engessou os blocos independentes. Os desfiles vinculados à entidade, já iniciados com a apresentação da Banda do Bolinha em 31 de dezembro, estavam previstos para acontecer entre 27 de janeiro e 21 de abril. Nesse período, a Liga reivindicava três datas na Orla do Guaíba – 24 de fevereiro, 3 de março e 10 de março -, além de outras datas para realizar desfiles descentralizados, em regiões como a Vila do IAPI, Bom Jesus, Jardim Botânico, Santana, Cefer, Restinga, Santa Rosa, Tuca, Cruzeiro, Morro Santana e Centro Histórico.

Segundo ele, a Liga conseguiu aprovar um projeto de financiamento via leis de incentivo e estava próxima de fechar um patrocínio de R$ 150 mil que iria bancar os custos de todos os desfiles ligados a ela, mas as negociações ficaram ameaçadas pelas datas impostas aos independentes, distantes do feriadão de Carnaval, entre 2 e 5 de março.

Nenhum dos 16 blocos ligados à entidade irá participar do circuito oficial. “Não tem porque participar do edital, estamos há dois anos trabalhando na captação. A gente só vinha para abrilhantar o Carnaval de Porto Alegre, porque não dependemos de nada. Teríamos condições de botar a estrutura que as normas da Prefeitura exigem nos nossos circuitos”, diz.

Para Ian, a Prefeitura ajuda os independentes “se não atrapalhar”. “Se o bloco quer sair em determinado dia e garante toda a estrutura sozinho, deixa sair. É isso que a gente quer. O direito de fazer o Carnaval no nosso dia garantindo toda a estrutura para isso”, diz.

Como advogado, ele diz estranhar que o edital tenha sido o instrumento jurídico escolhido para restringir eventos de entidades que não irão aderir a ele. “Você trata no edital sobre quem não vai aderir. Se eles não vão aderir, porque vão obedecer ao que está no edital?”, questiona. “O que eles quiseram ali foi sinalizar para a empresa ganhadora que ela vai ter exclusividade sobre a cidade, só que essa exclusividade conflita diretamente com o direito constitucional de livre manifestação cultural. Acho que é um risco demasiado por uma coisa que não precisava ser tratada no edital”.

Maricato diz que a decisão de limitar a autorização de desfiles entre os finais de semana dos dias 16 de fevereiro e 24 de março aos circuitos oficiais se dá em decorrência a limitação da capacidade da Prefeitura de garantir condições de segurança para a realização de mais de um desfile simultâneo de blocos, nem para os foliões, nem para a empresa organizadora. “A gente não tem como botar dois eventos ao mesmo tempo em Porto Alegre. Temos um número x de guardas municipais, um número x de agentes da EPTC, assim como a Brigada Militar tem um número x de policiais”, diz.

A Secretária de Cultura tem realizado conversas com os blocos no sentido de tentar atrair o maior número possível de entidades para o evento oficial. Segundo Maricato, a expectativa é que o Carnaval de rua possa atrair, somando todas as datas, até 1,5 milhão de foliões na cidade. “A ideia é construir é produzir um Carnaval que seja um marco de qualidade para que possamos construir para os próximos anos”, diz. “Nós queremos dar uma cara nova ao Carnaval de Porto Alegre, dar mais segurança, comodidade e ter uma quantidade maior de foliões. Não adianta o bloco A, B ou C querer sair na data oficial e prejudicar o coletivo”, diz.

Otávio diz que dois advogados estão estudando o edital para ver quais as medidas que a Liga Descentralizada poderá tomar para garantir as datas que planejadas por seus blocos originalmente. Na tarde desta quinta, ele se reunirá com o vice-prefeito, Gustavo Paim (PP), para tratar do assunto. Uma reunião posterior entre os coordenadores da Liga deverá decidir qual é a posição que a entidade assumirá, o que inclui a possibilidade de questionamento judicial da restrição do edital aos independentes. Ele já adianta a intenção é garantir a realização dos desfiles dos blocos vinculados à Liga nas datas previstas originalmente.


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