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27 de dezembro de 2018
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19:42

Abandono de animais cresce no final do ano: ‘São pessoas que viajam, que acham que é um fardo’

Filhotes com menos de 60 dias, trazidos para a Unidade de Saúde Animal Victória (USAV), na Lomba do Pinheiro, no final de semana antes do Natal. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Filhotes com menos de 60 dias, trazidos para a Unidade de Saúde Animal Victória (USAV), na Lomba do Pinheiro, no final de semana antes do Natal. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

Lícia Barbosa foi a primeira a chegar à Unidade de Saúde Animal Victória (USAV) na manhã da quinta-feira (27). Aguardava do lado de fora, encostada em um dos prédios da entrada, se refugiando na sombra. Ao seu lado, uma vira-lata fêmea enrolada em um edredom tentava se erguer para interagir. Não conseguia. Na noite de Natal, alguns dias antes, tinha perdido seus filhotes ao dar à luz. “Nem se mexeram”, descreve Lícia. “Tivemos medo que ela pudesse ter tido alguma infecção”, continua.

Por isso, a cadela ainda sem nome foi levada para a USAV. No dia seguinte à celebração natalina, Lícia ligou para os veterinários da Unidade pedindo orientações. “Disseram que ela provavelmente precisaria de cirurgia, que deveria trazê-la com urgência.” Assim, ela se deslocou do Jardim Lindóia, onde mora, até a Lomba do Pinheiro para conseguir atendimento. “Sem esse espaço, eu não conseguiria atendimento. A gente acha, quer ajudar… Mas tudo é caro demais. Fica complicado. Provavelmente, se não fossem essas pessoas, ela acabaria morrendo na rua.” Lícia te outros cinco cães em casa. “Vou ficar com ela, claro. Já virou a o xodó, não adianta.”

No entanto, o caso de Lícia é classificado como incomum pela equipe da USAV. “O nível de abandono cresce muito no final do ano. São pessoas que viajam, que acham que é um fardo. Aliado à isso, há a falta de iniciativas para a castração e de acompanhamento após a adoção. Não há como pensar em abandono sem pensar em castração e posse responsável”, explica a veterinária Denise Marques Garcia.

A organização Patas Dadas, uma das maiores de Porto Alegre voltada à proteção animal, anunciou, através de uma nota, que se viu obrigada a fechar suas portas antes do Natal por não ter condições de abrigar mais animais. “Sempre pensamos na qualidade de vida dos animais já abrigados, e por isso comunicamos que não realizaremos novos resgates até que a situação se normalize, tanto fisicamente quanto financeiramente”, aponta a organização.

Unidade de Saúde Animal Victória (USAV), na Lomba do Pinheiro. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Denise é uma entre oito veterinários aprovados em concurso realizado pela Prefeitura de Porto Alegre para assumir as operações da Unidade. “Temos concentrado muito do nosso trabalho em ações que envolvam comunidades. Esse ano, fizemos isso junto aos postos de saúde das periferias e aldeias indígenas, quando eles faziam um mutirão para reunir animais para a castração. É prevenção”, elucida.

Cada passo dado para subir a rampa de acesso ao prédio principal da USAV é sonorizado por um conjunto de latidos dos cães que habitam o canil logo ao lado. Do outro lado, mais pessoas chegam com seus animais formando uma fila ao lado de Lícia. “Logo eles vão começar a ser chamados para a triagem”, diz Denise. “Antes era muito pior, não tínhamos como receber ninguém. As pessoas esperavam do lado de fora, com sol ou chuva.”

Operando desde 2011, com a missão de “estabelecer e executar políticas públicas destinadas à saúde, proteção, defesa e bem-estar animal em Porto Alegre”, a equipe de atendimento de saúde animal já atuava muito antes da construção da USAV. Até o início de 2017, os trabalhos eram realizados através da Seda (Secretaria Especial dos Direitos dos Animais). No entanto, uma das primeiras medidas do governo de Nelson Marchezan Jr.(PSDB) foi extinguir a pasta.

As funções de veterinária, que antes ficam a cargo de funcionários comissionados, tinham passado a ser exercidas por veterinários concursados – o chamamento foi uma das últimas ações do então prefeito José Fortunati, em 2016. O chamamento deveria encaminhar o início das atividades no novo prédio da unidade. A obra, iniciada e concluída em 2016, foi fruto de doação do empresário Alexandre Grendene.

Listado pela revista estadunidense Forbes com patrimônio de cerca de U$ 1,8 bilhões, Grendene é o nome por trás da marca fabricante de sandálias. Além disso, é conhecido pelo zelo com seus cães, em especial Kate, seu poodle. Segundo a Prefeitura, a construção da nova unidade custou em torno de R$ 6 milhões e foi realizada ao longo de seis meses, com apoio da construtora Melnick Even. Porém, a estrutura ficou mais de um ano inoperante.

Além dos oito veterinários, a USAv conta com os chamados ‘manejadores’, que são funcionários da empresa Cootravipa – que presta serviços à Prefeitura – capacitados pela própria equipe médica. Foto: Joana Berwanger/Sul21

O prédio foi inaugurado em novembro de 2016, mas não estava apto para a ocupação por falta das licenças necessárias. A Prefeitura de Porto Alegre só recebeu a licença ambiental, emitida pela prefeitura de Viamão, em novembro de 2017. Isso porque o terreno onde a unidade se localiza fica na divisa entre os dois municípios, no bairro Lomba do Pinheiro. Em seguida, foi necessário esperar pela autorização do Conselho Regional de Medicina Veterinária. Concluída a etapa de obtenção dos documentos, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade, por meio da Coordenação-Geral dos Direitos Animais, iniciou a transferência da estrutura que funcionava na Unidade de Medicina Veterinária para o novo prédio.

“Fomos atendendo como dava enquanto isso”, afirma Denise, demonstrando como a estrutura que hoje serve de abrigo aos animais era adaptada para cirurgias de castração. “Melhoramos muito”, ressalta.

“Quem adota ou compra um animal tem que saber que será responsável por aquela vida por, aproximadamente, 15 anos”, inicia Denise. “Tem que vacinar, tem que alimentar de forma adequada, tem que levar ao veterinário regularmente e tem que castrar. Não são questões arbitrárias, não é negociável.” Ela enfatiza a importância da castração. “É muito comum adotarem fêmeas já grávidas e deixarem os filhotes na rua.”

Para ela, o que deve ocorrer para a diminuição de animais abandonados, além da posse responsável, é um aumento de políticas públicas voltadas à castração. Só na USAV, são cerca de 20 procedimentos de esterilização realizados todos os dias, pelas manhãs.

Pela manhã, o prédio branco que abriga os consultórios e salas de cirurgia é preenchido pelo sol. As janelas da fachada deixam entrar a luz que rebate nas paredes brancas e dificilmente permitem que se tenha algum espaço com sombra. Atrás do balcão da recepção, duas portas levam à ala de pesagem e cirurgias. Ali, cães e gatos são separados em salas distintas, onde cada animal é designado a uma gaiola. Depois de anestesiados e preparados, passam pelo procedimento. “Os donos deixam eles aqui por volta das 8h. Às 13h, já podem buscá-los”, explica Denise.

Hoje, 75 cães e gatos residem no local. Foto: Joana Berwanger/Sul21

A Unidade não conta com internações. O serviço de castração é destinado a cães encontrados nas ruas ou para famílias que estejam cadastradas no Bolsa Família ou qualquer outro programa que requeira o Número de Inscrição Social (NIS). O mesmo critério é utilizado nos atendimentos veterinários, que ocorrem no período da tarde. “É importante ressaltar que isso não é um hospital. Somos um centro de atendimento básico. Traumatologia, por exemplo, é algo que não podemos tratar”, afirma a veterinária. Casos mais graves são, geralmente, encaminhados para atendimento privado.

Além disso, a USAV conta com espaço para abrigamento. Hoje, 75 cães e gatos residem no local. Segundo Denise, a capacidade máxima é 100 animais, mas a Unidade já chegou a contar com 300. “Muitos vieram de situações de abandono e maus-tratos, além de casos em que a própria Justiça determina o recolhimento.” Denise conta que não é incomum receberem animais de acumuladores. “Já são 90 acumuladores de animais cadastrados pela Justiça. Eles chegam a ter dezenas de animais, 50, 60…”, conta. De acordo com ela, um grupo de apoio está sendo criado dentro da Prefeitura para garantir atendimento de saúde mental a estas pessoas. “Ainda assim, a iniciativa é bem menor do que o que seria necessário”, diz a veterinária, ressaltando o quanto apreensões de animais em casas de acumuladores são comuns. “Os animais acabam com medo da própria espécie e do ser humano. São casos muito delicados.”

Todos os animais que residem na Unidade são castrados, vacinados e microchipados com dispositivo que serve como localizador e conta com os dados do adotante. “É uma forma de controlar o abandono. Faz-se a leitura do equipamento para responsabilizar o tutor, caso seja necessário.”

O artigo 32 da Lei 9.605/98 determina detenção de três meses a um ano e multa a quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos ou realizar experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. A punição pode ser aumentada de um sexto a um terço se ocorrer morte do animal. Denúncias pode ser feitas através do número 156, além do portal da Delegacia Online do Rio Grande do Sul.

Denise Marques Garcia é veterinária na USAV desde 2016. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
27/12/2018 – PORTO ALEGRE, RS – Unidade de Saúde Animal Victória (USAV). Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

 


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