Cidades|z_Areazero
|
7 de novembro de 2018
|
14:34

Sem cumprir protocolo, reintegração de posse do Quilombo Lemos é suspensa

Por
Sul 21
[email protected]
Reintegração de posse do Quilombo Lemos foi suspensa nesta manhã. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

“Estamos aqui desde 1960. Meu avô e minha avó plantaram, cultivaram, nos criaram aqui. É a nossa história”, conta Sinval Maurício Lemos, neto do casal que, na década de 1960, se instalou no terreno ao lado do Asilo Padre Cacique.

Jorge Alberto Rocha de Lemos e Delzia Gonçalves de Lemos fundaram o que veio a ser o sétimo quilombo urbano autorreconhecido de Porto Alegre. Ambos trabalhavam no asilo, o que, segundo Sinval, garantiu a eles vínculo para permanecerem no local sem ter a propriedade sobre as terras reconhecida. “Meu avô era responsável pela manutenção do prédio. Trabalhou ali por 40 anos. Ele faleceu logo depois de chegar em casa do trabalho”.

Com a morte do patriarca, em 2008, o asilo iniciou o processo de reapropriação da área do quilombo, através de uma ação de reintegração de posse. De acordo com Sinval, a ação que tramitava na 17ª Vara Cível de Porto Alegre foi acelerada com a proximidade da Copa do Mundo de 2014. Ainda assim, o processo só avançou nesta quarta-feira (7).

No início da manhã, um oficial de justiça chegou ao local levando o despacho com a decisão do juiz, emitida em agosto de 2018. “O Doutor Juiz de Direito manda ao oficial de justiça que proceda de imediato a reintegração do autor na posse do bem imóvel situado na Avenida Padre Cacique”, apresenta o documento, no qual consta ainda: “Poderá o oficial de justiça proceder arrombamento de obstáculos, se necessário.”

O oficial foi acompanhado por quatro viaturas do Batalhão de Choque da Brigada Militar, assim como por escavadeiras. “Não podem tirar nossas casas!”, gritou uma moradora. De acordo com Sinval, às famílias, foram dados 30 minutos para que reunissem seus pertences e deixassem o terreno. “Todos nós fomos criados aqui. Cuidamos desse terreno. Nossas vidas estão aqui”, lamenta o morador.

Segundo o Tenente Coronel Mário Augusto, responsável pelo 1º Batalhão da BM e pelo comando da operação, a orientação dos policiais é a de “dar apoio” ao oficial de justiça. “Se não houver resistência, não há motivos para ter conflito”, disse, enquanto se dirigia ao local. No entanto, com a chegada da defensora pública Isabel Rodrigues Wexel, iniciaram-se as negociações para o cumprimento de protocolo, que não estava sendo seguido, e a reintegração acabou suspensa. Uma reunião está prevista para acontecer nessa quinta-feira (8) pela manhã, com a presença da Brigada Militar.

O Oficial de Justiça foi acompanhado por quatro viaturas do Batalhão de Choque da Brigada Militar, assim como por escavadeiras. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Protocolo descumprido

Isabel, defensora pública e dirigente do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria, afirma ter ficado sabendo da reintegração por terceiros. “Eu soube por meios extra-oficiais. Eu não fui intimada e eu teria que estar aqui hoje”. Ela diz ter feito questão de comparecer ao local para que seja cumprido o protocolo, assinado em julho de 2017, com recomendação do Ministério Público em situações de reintegração de posse.

A ação contou com a presença de trator que seria usado para “arrombar de obstáculos”. Foto: Joana Berwanger/Sul21

A primeira recomendação apontada pelo documento é a realização de uma reunião preparatória entre os moradores, o juiz por trás da decisão, o oficial de justiça responsável, um promotor de justiça da Promotoria de Justiça e Habitação da Ordem Urbanística, um defensor público, o conselho tutelar e representantes do Executivo. “O que eu estou pedindo para o oficial é que se realize a reunião que já deveria ter acontecido. Eles tinham que estar preparados para isso. O poder público tem que dizer para onde irão essas pessoas. Eu não tenho essa resposta hoje”.

A defensora também apontou irregularidades na ação policial. “Os policiais têm que ser identificados. Não podem estar assim [com apenas os olhos expostos]. Nunca tinha visto nada igual”, descreve. “O oficial de justiça não pode chegar aqui e deliberar, por sua vontade, que não é o caso de não aplicar o protocolo”.

Por volta das 11h, a luz e a água foram cortadas nas cinco casas que permaneceram no quilombo. Ali, moravam cerca de 20 pessoas – entre elas, seis crianças e um bebê de colo. Há cerca de dois meses, no entanto, o Quilombo Lemos era casa de, pelo menos, outras 40 pessoas. “Com a reintegração correndo, muitas pessoas decidiram sair e alugar um espaço em outras partes de Porto Alegre. Aqui, ficaram as pessoas que realmente não tinham outra alternativa”, explica Sinval.

Uma campanha de financiamento coletivo chegou a ser lançada para arrecadar recursos que auxiliassem as famílias nesse processo. Com os cerca de R$ 1 mil arrecadados, a comunidade realizou atividades culturais que visaram o fortalecimento da cultura negra e a aproximação com a população. O texto que narra a história do quilombo chama a atenção para a extrema valorização da área, o que atenderia aos interesses de corporações imobiliárias. “Passado quase um século de prestação de serviços remunerados e não remunerados pela família, cresce o processo de expulsão dos quilombolas do seu território. […] A família quilombola resiste! E não abrirá mão do direito de existir!”, encerra o texto.

Orientados pela Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, os moradores planejavam ficar, temporariamente, com familiares e amigos. “Não vamos abandonar esse lugar”, diz Sinval.

A posição do Asilo Padre Cacique

O Asilo Padre Cacique divulgou nota manifestando sua posição sobre o episódio:

O Asilo Padre Cacique informa que tentou por mais de dez anos de forma pacífica um acordo para a desocupação do imóvel localizado aos fundos da Instituição na Avenida Padre Cacique o qual se destinava a residência de funcionário zelador.

Após o falecimento do, então funcionário, familiares do mesmo se apossaram ilegalmente do imóvel, fato que motivou a propositura de uma ação judicial de reintegração por parte da Instituição. Ação esta que tramitou desde o ano de 2009, com os mais diversos recursos protelatórios, inclusive perante o Superior Tribunal de Justiça.

Desde às 9h desta quarta-feira (07/11) a Brigada Militar esteve presente no local para cumprir a reintegração de posse ao lado do Oficial de Justiça, porém os moradores se negaram a deixar o espaço. A ação foi suspensa próxima ao meio dia, em acordo acertado pela Brigada Militar e Justiça, com a promessa de que o imóvel será desocupado pacificamente no prazo máximo de 72 horas.

O Asilo Padre Cacique lamenta profundamente que as coisas tenham chegado a tal ponto, mas reitera a preocupação para que a medida judicial seja definitivamente cumprida, eis que tal área se destina a imediata construção do Centro de Convivências Diário (espécie de creche, onde serão acolhidos aproximadamente 150 idosos carentes).

Confira mais fotos:

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora