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16 de setembro de 2018
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11:43

Pressa para Temer e incerteza para milhares de famílias: como estão as obras da nova Ponte do Guaíba?

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Sul 21
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“Não temos contato com o DNIT há meses. Tudo é muito vago. Ainda não sabemos se teremos onde morar no próximo ano”, diz Rodrigo Ourives, líder comunitário da Voluntários. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

No sábado (08), uma embarcação de médio porte parou próximo a um dos canteiros de obras no meio do Guaíba. A bordo dela, duas figuras singulares contemplavam a estrutura em construção que corta o lago. Os ministros da Casa Civil, Eliseu Padilha, e da Secretaria de Governo, Carlos Marun, foram fotografados com capacetes e sorrisos. “Vai fechar o ano com chave de ouro”, teria dito Padilha.

A visita dos ministros consolidou o anúncio da inclusão do empreendimento em um programa de inaugurações a serem feitas pelo presidente Michel Temer até o fim do ano. Com quase 80% de reprovação, Temer pretende concluir a obra que já dura quase quatro anos nos próximos três meses. “Existe uma determinação do presidente para que não faltem os recursos necessários para que entreguemos em dezembro. Temos um calcanhar de aquiles que é o reassentamento das cerca de 300 famílias que residem na Ilha dos Marinheiros. O sucesso do nosso objetivo depende dos reassentamentos”, explicou Marun, em matéria divulgada pela assessoria da Secretaria da Presidência da República.

No entanto, o “calcanhar de aquiles” é muito mais complexo e se estende para além da Ilha Grande dos Marinheiros. Segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (DNIT), 1089 famílias e 33 estabelecimentos comerciais estão cadastrados em sistema para organizar o reassentamento. No entanto, os nomes foram coletados em 2014 na Ilha dos Marinheiros e nas duas comunidades no continente que seriam afetadas, a Vila da Areia e a Vila Tio Zeca.

Porém, nesse meio tempo, outras ocupações se estabeleceram nas áreas afetadas pela construção. Não há um levantamento total da quantidade de novas famílias, mas, segundo lideranças locais, pelo menos três novas vilas se formaram no entorno. Uma delas, a Vila Voluntários, conta com pelo menos 70 famílias. “Não temos contato com o DNIT há meses. Tudo é muito vago. Ainda não sabemos se teremos onde morar no próximo ano”, diz Rodrigo Ourives, líder comunitário da Voluntários.

A construção da nova ponte está nas mãos do Consórcio Ponte do Guaíba/RS, formado pelas empresas Construtora Queiroz Galvão S/A, que responde por 97% das obras, e EGT Engenharia Ltda, que responde por 3%. Citada na 33ª fase da Operação Lava Jato, a Queiroz Galvão foi acusada de pagar cerca de R$ 10 milhões à Petrobras ilegalmente. Em agosto de 2016, o ex-presidente e o ex-diretor foram presos preventivamente por conta de ligações com crimes fiscais relacionados à empreiteira. Assim, os desdobramentos da Operação recaíram sobre as obras da nova Ponte do Guaíba, empurrando sua conclusão, originalmente prevista para setembro de 2017.

Mesmo com a pressa do Governo Federal em entregar as obras até o final de 2018, o DNIT calcula que precisaria de, no mínimo, mais seis meses para a conclusão definitiva do trecho de 2,9 km. Durante a visita, Padilha chegou a garantir que, para entregar a ponte na data, será necessário aportar cerca de R$ 100 milhões em recursos extras, além dos R$ 111 milhões que já estão no caixa do DNIT. “Temos muito mais do que R$ 100 milhões em obras que não serão inauguradas em 2018. É uma questão de conveniência para fazermos a entrega à sociedade brasileira. A lógica manda que façamos o remanejamento e já existem obras identificadas de onde poderemos retirar esses recursos”, detalhou o ministro.

Muito mais do que moradia

Há quatro anos, o padre Rudimar Dal Asta iniciou um trabalho junto ao centro Marista na Ilha ao acompanhar as famílias no processo de reassentamento. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Na manhã de terça-feira (11), o padre Rudimar Dal Asta estava ansioso. Depois de quase quatro anos, teve acesso à lista com os nomes das famílias da Ilha Grane dos Marinheiros ajuizadas no processo de compra assistida. Essa é uma das três opções apresentadas pelo DNIT para o reassentamento das comunidades afetadas pela construção da ponte. Essa alternativa consiste na aquisição de um imóvel, com verba do Departamento, em favor das famílias desalojadas, as quais podem escolher a moradia, desde que ela se enquadre em uma faixa de valor que varia entre R$ 158 mil e R$ 178 mil.

Na falta imediata de unidades habitacionais nas proximidades das comunidades afetadas, existe a possibilidade de adesão ao Programa de Abrigamento Provisório. Além disso, o DNIT também garantiu reassentamento em loteamentos residenciais no bairro Humaitá e no Arquipélago.

“O meu nome está onde?”, perguntou um amoradora ao padre. “Aqui”, ele apontou no papel. “E o do meu neto?” Dal Asta hesitou, não soube o que responder de prontidão. “O dele não”, disse, por fim.

O padre explica que o rapaz em questão estava preso em 2014. Quando ele foi solto, o cadastramento já havia acabado. Assim, ele não foi incluído no programa. “E isso é comum. Não há garantia nenhuma de que essas famílias permanecerão juntas”, afirma.

Há quatro anos, o padre iniciou um trabalho junto ao centro Marista na Ilha para acompanhar as famílias no processo de reassentamento. Dal Asta destaca que a comunidade é fortemente marcada pela relação com a reciclagem do lixo, sendo  muito impactada pela Lei Municipal 10.531/08, conhecida como a Lei das Carroças, que estabeleceu um período de oito anos para que os veículos de tração animal (VTA) e de tração humana (VTH) fossem gradativamente reduzindo a circulação na Capital. “Isso foi muito cruel para eles. Depois dessa aprovação, a fome voltou para as ilhas”.

A estrutura da ponte, há poucos metros do Santuário. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Ele ressalta que mais de 90% das famílias das ilhas trabalham com reciclagem. “As pessoas precisam de trabalho, além de casa. Com a compra assistida, como elas vão garantir seu sustento?”, questiona. Segundo ele, por falta de diálogo e explicação, as famílias custaram a compreender todo o contexto da compra assistida antes de assinar a solicitação para integrar o programa. “Muitas estão dando para trás. No início, a compra assistida foi um engano. A maior parte das pessoas quer permanecer morando na Ilha”.

Mesmo com a opção de reassentamento no lado sul do arquipélago, o fato de que nenhuma obra foi iniciada preocupa os moradores. “Se não há garantias pela compra assistida, há menos ainda pelos reassentamentos”.

A Escola de Educação Infantil Marista Tia Jussara está localizada abaixo de um dos acessos próximos à ponte antiga. Caminhando cerca de 5 minutos em direção à zona residencial, é possível ver os pilares de concreto da estrutura nova.

Liane Farias, moradora e conselheira do orçamento participativo da região, abre o portão do ‘santuário’. O espaço é uma sala de poucos metros quadrados com cadeiras empilhadas, vitrais e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida das Águas, encontrada no galpão de reciclagem da comunidade. Apesar da imagem da santa, o santuário acolhe todas as religiões. “Ixi! O que mais tem é gente de crenças diferentes nas ilhas”, exclama o padre. “Mas trabalhamos com todas. É muito bonito”.

Do lado de fora, Liane observa a estrutura da nova ponte. “Eles estão vindo para cima da gente”. Em algum momento, durante a elaboração do projeto da ponte, estabeleceu-se a curvatura do empreendimento. Coincidentemente, ela cortará o Santuário e o Galpão de Reciclagem da Associação dos Catadores de Materiais, construído em 1985. Liane mora na ilha há 36 anos. “Sair daqui sempre foi algo recorrente, independente do governo. Mas aqui sempre foi um lugar que acolheu todas as pessoas. Além disso, quem me botou aqui dentro foi o próprio governo”. Na década de 1970, Liane morava na rua Dona Teodora, no bairro Navegantes. Em 1973, com a construção da Freeway, sua família foi removida e, segundo conta, “jogada” na Ilha. “Vim para uma casa quebrada com três filhos pequenos. Eles não podem dizer que sou uma invasora”.

Blocos de concreto acima das famílias

Susana e três de seus oito filhos em casa. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Susana Soares de Oliveira chegou em casa no final da manhã de terça-feira (08) carregando duas sacolas de lingeries. “Não rendeu muito hoje”, diz, sorrindo. Ela está desempregada, é mãe de oito filhos e vive na Vila Voluntários há pouco mais de três anos. Suzana conta que sempre viveu na região. Quando estava empregada, conseguiu alugar uma casa em um bairro próximo. Porém, com a falta de trabalho, veio a dificuldade de pagar a creche das crianças e o aluguel. “Daí voltamos para a Vila”.

A Vila Voluntários se localiza entre as Vilas Areia e Tio Zeca, formadas há mais de 60 anos. A ocupação de cerca de 70 famílias se estabeleceu em 2014. “Sempre tem uma pessoa que ocupa e chama os outros, foi assim aqui”, explica Rodrigo Ourives, uma das lideranças locais.

Susana mora na entrada da Vila. “Há umas semanas, caiu um pedação de concreto aqui na frente. Tremeu tudo”. A nova Ponte do Guaíba está sendo erguida há poucos metros da sua casa. “Levantaram essa ponte pra cima da gente. E não nos deram alternativas”.

Obras da nova ponte avançam na Capital. Foto: Joana Berwanger/Sul21

O caso da Vila Voluntários exemplifica o que há de incerto no futuro das famílias não cadastradas pelo DNIT. Para elas, não foi oferecida qualquer alternativa como nos casos dos moradores mais antigos das regiões afetadas. “Não duvido que muitos adeririam à compra assistida. Aqui, o contexto é de vulnerabilidade extrema, com esgoto à céu aberto, luz que oscila, água que não chega…”,dizevela Ourives.

Os moradores estão sendo orientados pela Defensoria Pública do Estado. Ourives fala sobre a dificuldade de contato com o DNIT, afirmando que uma audiência pública foi realizada, porém representantes do Departamento não compareceram.

Segundo o DNIT, as obras já estão 68% concluídas e é possível avançar até 90% sem a retirada das famílias. Por meio de nota, o Departamento não explica como serão tratados os casos dos moradores que não participaram do cadastramento. Porém, informa que as famílias cadastradas que optaram pela modalidade da Compra Assistida poderão adquirir seu próprio imóvel, de acordo com sua preferência, em todo o Estado do Rio Grande do Sul, assim como as que optarem por indenização. As famílias cadastradas que optaram pela modalidade de Reassentamento em Unidade Habitacional serão realocadas na própria Ilha Grande dos Marinheiros, em imóveis novos, construídos para esse fim.

Sobre o licenciamento ambiental para as construções, o DNIT afirma que a documentação está sendo conduzida junto à FEPAM, já tendo sido emitidas as Licenças Prévias de todas as três áreas (Ilha Grande dos Marinheiros, Dona Teodora e Ernesto Neugebauer). Quanto aos Projetos de Reassentamento relativos à infraestrutura, como rede de esgoto, água e iluminação pública, arruamento e calçamento estão em tramitação junto à Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

Ainda assim, o Departamento mantém a previsão de entrega das obras com o reassentamento completo para o segundo semestre de 2019. “Nós não somos contra a construção da ponte. Nenhuma família é. Estamos questionando o processo que encaminha a moradia. Eu me preocupo, especialmente, com a relação que a comunidade tem com este espaço”, resume Rodrigo.

Conciliação

Estrutura da nova ponte em construção. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Com o ajuizamento dos casos, ficou à cargo da 26ª Vara Federal de Porto Alegre promover a conciliação entre as famílias e o DNIT. Segundo a juíza federal substituta Ana Latorre, um calendário de audiências foi estabelecido para facilitar o canal de diálogo entre as partes, assim como integrar os casos com a Defensoria Pública da União e o Ministério Público.

“No momento, as famílias que não estão no cadastro não vão ser contempladas”, assegura. “Também nos preocupamos com essas pessoas, porém há uma limitação da administração, tanto de questão orçamentária quanto de licenciamento dos empreendimentos”, diz.

Ana garante que está “bem encaminhada” a construção de um galpão provisório para dar conta das famílias que dependem da reciclagem. “Será construído em um lugar próximo de onde é hoje, mas não há determinação, ainda, sobre a estrutura definitiva”.

De acordo com ela, a visita dos ministros impacta no processo de desgaste das famílias. “Fica uma incerteza. As tratativas com os moradores começaram em 2014. São quatro anos em que eles não sabem se permanecerão em suas casas ou não”.

Confira mais fotos: 

Galpão de reciclagem na Ilha dos Marinheiros. Foto: Joana Berwanger/Sul21
O Santuário, na Ilha dos Marinheiros. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Vila Voluntários. Foto: Joana Berwanger/Sul21

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