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11 de setembro de 2018
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11:16

Prefeitura remove pessoas em situação de rua e promete ‘revitalizar’ Av. Goethe com food trucks

Por
Luís Gomes
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Valério e Amarelo são alguns dos raros moradores em situação de rua que restaram na região das avenidas Goethe e Mariante | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Valério mora sob o viaduto Tiradentes, do lado da Rua Silva Só, há 12 anos. Diz que sempre tenta deixar a área organizada, sem sujeira espalhada. Vivem ali ele e o seu cão, Amarelo, a quem ele chama de pai. “É o pai porque quando eu saio, ele fica cuidando de casa”. Conta que outras pessoas já tentaram se somar a eles no local, mas acabam desistindo por não se adaptarem. “Eu peço muita organização, e a galera fica meio chateada e acaba saindo”. Ele conta que conhece as pessoas que moram sob o viaduto do lado da Rua Mariante, mas frisa que o outro lado é uma situação diferente. “Cada um serve o seu café. Lá é o lado dele, aqui eu cuido do meu”.

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Do outro lado da rua também é onde Magda abriu um estabelecimento para vender hambúrguer e cachorro quente no último sábado (8). Ela diz que o primeiro dia teve movimento fraco, mas era feriado. Domingo não abriu. Hoje, aberto desde a manhã, o movimento já foi melhor. “O horário do almoço deu uma puxada bem boa”, conta. A ideia é manter o negócio aberto das 9h às 19h. “Não vou me estender muito, a princípio, porque eu quero sentir o movimento, e até por causa do perigo”. Por enquanto, disponibiliza duas mesas com algumas cadeiras sobre um pavimento recém colocado sob o viaduto.

O Meg Burguer não tem nem letreiro. Magda credita ao fato de ainda ser nova no ramo e estar aprendendo com a prática. Há dois meses, foi acompanhar um amigo que tentava conseguir um alvará para outro negócio, quando teve a ideia de abrir um espaço que fosse dela. “Perguntei onde eu poderia colocar uma coisa assim e, a princípio, a primeira ideia que o rapaz me deu foi aqui no viaduto Tiradentes”.

Meg Burguer abriu sob o Viaduto Tiradentes no último sábado | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O negócio dela está inserido dentro de uma iniciativa da Prefeitura de Porto Alegre para “revitalizar” espaços públicos subaproveitados ou ocupados por pessoas em situação de rua, conforme diz nota divulgada no sábado. Na última quinta (6), já havia sido inaugurado um espaço para gastronomia itinerante próximo à altura do número 500 da Av. Goethe. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE) diz que o espaço era “ocupado por moradores de rua e servia de ponto de tráfico”. A mesma nota comemorava que um “truck” de cerveja havia vendido, entre às 10h e 15h de sábado (8), 28 copos de cerveja artesanal, a um preço médio de R$ 10.

Taxistas do ponto ao lado de uma praça que fica na esquina da Goethe com a Rua Vasco da Gama dizem que a região contava com a presença de “umas oito pessoas” em situação de rua. Era o caso de uma família que tinha montado uma “casa” no canteiro central da avenida. Todos foram removidos. Na tarde desta segunda (10), os pertences do casal estavam envoltos em um grande saco junto a uma árvore da praça, mas não havia sinal de seus donos. Os taxistas dizem nunca terem ouvido falar de um ponto de tráfico na região e que os moradores não causavam problemas. Dizem que até varriam a praça. “A Prefeitura deveria tapar os buracos em vez de colocar food truck”, reclamou um deles.

Pertences de pessoas em situação de rua foram deixados em praça na Av. Goethe, nas proximidades com a Vasco da Gama | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A iniciativa na Goethe segue os moldes do que ocorreu em outros pontos da cidade. Há alguns meses, pessoas que moravam sob o viaduto Otávio Rocha foram removidas por uma operação da Brigada Militar. Na sequência, a Prefeitura autorizou a instalação de food trucks na Borges de Medeiros. Também nesse segundo semestre, um estabelecimento abriu sob o Viaduto Abdias do Nascimento, localizado na Av. Beira-Rio, próximo ao Museu Iberê Camargo.

Luís Antônio Steglich, diretor de Promoção Econômica da SMDE, cargo que seria o equivalente ao secretário da Smic na gestão anterior, diz que ali sob o Abdias também era uma região que seria conhecida pelo tráfico de drogas. Ele destaca que, em todos esses lugares, o que ocorre primeiro é uma ação dos órgãos de assistência social para o acolhimento das pessoas. Depois é feita uma limpeza. Então, o espaço é liberado para que seja dada uma destinação comercial.

Steglich diz que a ocupação do espaço da Goethe está sendo combinada com a Associação de Gastronomia Itinerante, com o objetivo de existir um rodízio de food trucks no local. Teoricamente, haveria espaço para 10 negócios operarem ao mesmo tempo, diz o diretor. Nos primeiros dias, cada jornada contou com apenas um veículo. Nesta segunda, não havia nenhum, mas a ideia é que haja ocupação todos os dias. “A gente está disponibilizando e eles estão experimentando”.

Local destinado aos food trucks estava vazio nesta segunda-feira | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Steglich explica que a Prefeitura tem buscado facilitar iniciativas nestes locais, que classifica como subaproveitados, estando aberta para à apresentação de projetos, como o Meg Burguer, que devem então passar por uma avaliação quanto à adequação aos espaços que pretendem ocupar. Há regras como a necessidade de deixar ao menos 1,80 m de calçamento para a circulação de pessoas e a vedação de instalação de food trucks em locais de grande movimento, como a Av. Ipiranga, por exemplo.

“A medida que existem condições, buscamos a ocupação de espaços públicos que por um motivo ou outro estavam alijados do comparecimento do público. Estamos conseguindo uma revitalização de espaços e obter uma ocupação correta, adequada, controlada, que permita ao cidadão conviver com aquela área de maneira mais efetiva”, diz Steglich. “Se o espaço vai ser ocupado por alguém, que seja pelo município em prol da cidade”.

Magda destaca que a abertura do negócio foi bastante facilitada pela Prefeitura. “O intuito era agitar esse pedaço aqui, porque tem muito morador de rua. Eles querem revitalizar o viaduto. Eu, inclusive, tenho a intenção de me estender um pouco porque eu já vi que atrás do meu estabelecimento tem morador de rua, à noite eles ficam ali. Então, vou me estabelecer um pouco mais atrás para cobrir o espaço e não deixar tanto para eles se estabelecerem”, diz.

Placas anunciando aluguel proliferam-se pelo comércio da Av. Goethe | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Valério ainda não foi removido. Questionado sobre o que acha do projeto de revitalização, ele se mostra cético. “A Prefeitura faz isso para ganhar o dinheiro do povo. Aqui na volta tem muitos restaurantes, esses ‘burguer’, e vai comer aqui na poluição? Mas, quem sabe são os grandes, nós somos os pequenos. Se me tirar daqui, eu posso ir para outro lugar. Entendeu, meu jovem? A situação vai continuar a mesma”.

Ele é catador de resíduos recicláveis. Aos 38 anos, não demonstra perspectiva de sair da rua, mas insiste que não quer que esse seja o destino de seus três filhos, que moram com a mãe no bairro Glória. Do pouco que ganha, uma parte envia para ajudar com o aluguel da casa. Nesta segunda, também tinha conseguido comprar uma cesta básica que esperava que eles viessem buscar. Atualmente, não recebe nenhum benefício ou auxílio, seja da Prefeitura, Estado ou União. “Eu tinha o meu Bolsa Família, esse tal de Temer entrou na presidência e cortou. A única coisa que eu me defendo é com a minha carrocinha, catando, para eu poder defender a minha dificuldade e ajudar os meus filhos. E, mais importante, mantendo a dignidade para seguir”. Se precisar sair, já preparou a casinha do Amarelo colocando rodinhas. É acoplar no carrinho e seguir para outro local. “E assim vou indo”.

A grande aposta do acolhimento de pessoas em situação de rua da Prefeitura é o programa Moradia Primeiro, que busca combinar o acesso ao aluguel social e o tratamento contra dependência química de pessoas em situação de rua. A ideia é oferecer bolsas de R$ 500 para 153 inscritos, com os recursos vindos do governo federal. O dinheiro devendo ser destinado para o aluguel de imóveis vagos cadastrados pela Prefeitura.

Valério mostra fotos ao lado dos filhos tirada há alguns anos | Foto: Guilherme Santos/Sul21

No entanto, Veridiana Farias Machado, educadora social e apoiadora do Movimento Nacional da População de Rua do Rio Grande do Sul (MNPR-RS), diz que o programa, por enquanto, não tem sido destinado para o acolhimento das pessoas que estão sendo removidas dos espaços “revitalizados”.

“Desde que começou o projeto, a gente ficou sabendo que apenas 18 imóveis foram cadastrados no Moradia Primeiro. Então, ao mesmo tempo que tem uma questão midiática, do prefeito dizer que está acontecendo, que tão oferecendo, também tem uma retirada das pessoas dos locais. Inclusive, eles não lidam com a questão de números de uma forma transparente. A gente já perguntou, enquanto movimento, quantas pessoas já foram incluídas no Moradia Primeiro, como está funcionando, e eles não dizem. A gente nem sabe quantas foram incluídas nesse negócio, mas sabemos que elas estão sendo enxotadas desses lugares. O pessoal que estava no Otávio Rocha não recebeu nada. Foram para a Praça da Matriz, para a praça do Aeromóvel, para a frente do prédio da Receita Federal. Se espalharam e não receberam nada, é isso que a gente tem ouvido das pessoas em situação de rua”, afirma Veridiana.

Antigo local que abrigou casa noturna está para aluguel, mas com aspecto de total abandono | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Retorno da vida noturna

A nota divulgada pela Prefeitura destaca a intenção de trazer a região da Goethe “de volta aos bons tempos”, quando tinha uma vida noturna intensa. Atualmente, o cenário está bastante distante desse ideal. Poucos bares restaram na região. Em uma caminhada nesta segunda, foi possível perceber mais estofarias do que espaços destinados à boemia. Em geral, há muitos comércios fechados e com placas de “aluga-se”.

Na esquina da Goethe com a Castro Alves, a filial de uma grande rede de pizzarias está fechada de um lado da rua. Do outro, onde já foi uma casa noturna que formava filas de jovens, há atualmente uma placa de aluguel em que se lê: “Não locamos para casa noturna”. Um dos antigos estabelecimentos boêmios que resistia até esse ano, o Beer Street, agora é ocupado pelo comitê de um candidato a deputado federal. Os bares que ainda restam estão praticamente todos concentrados na vizinhança do Parcão.

Kleberson diz que o movimento do Twister caiu fortemente desde o seu auge | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Kleberson Brum Perizzolo há 19 anos é funcionário do Bar Twister, um dos poucos que ainda resiste nas proximidades da Vasco da Gama. Ele conta que, quando começou, o movimento era muito grande, permanecendo assim até por volta de 2005, pelo que recorda. “De 2005 a 2010, deu uma diminuída. Depois, caiu mais ainda. De dois anos para cá, caiu completamente”, resume. Com a queda no movimento, que ele diz ter sido de até 90% na comparação com os tempos áureos, o Twister passou por uma mudança de proposta, com o serviço de almoço em buffet passando a ser o carro-chefe do estabelecimento. “Mudamos ano passado”, diz.

Ele credita a queda vertiginosa da vida noturna na Goethe ao fechamento de bares e do comércio na região. Quanto às pessoas em situação de rua, ele não crê que a chegada delas tenha interferido na derrocada da região como “point” noturno. Destaca que a maior ocupação dos canteiros centrais da avenida começou esse ano. “Eles montaram alojamento ali, mas já estava devagar o movimento”, diz, para complementar: “Mas isso ficou chato porque estragou a avenida Goethe. Um lugar bonito e organizado, os caras montar alojamento estraga a Goethe. Vira uma favela”. Apesar de preferir que os vulneráveis não se abrigassem ali, diz que nunca ficou sabendo da região ter se tornado um ponto de tráfico. “Só ouvi reclamações do mau cheiro”.

Maurino montou a sua casa junto ao muro de um prédio que está com todo o térreo fechado, na Goethe | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Natural de Pernambuco, o marceneiro Maurino Gomes da Silva chegou a Porto Alegre em 1982, deixando dois filhos para trás, com quem não tem mais contato. Morar na rua é algo recente na sua vida. Aposentado, ele recebe um salário mínimo. Até o ano passado, pagava por um espaço na Av. Sertório, mas o proprietário “cresceu o olho” e pediu um aumento. “Ele queria quase a minha aposentadoria toda, R$ 800”.

Maurino veio parar diante de um prédio de tijolos vizinho ao antigo Manara. Na frente, há uma placa de aluga-se. O térreo, que deveria ser dedicado a salas comerciais, está todo vazio — ainda há oito andares com apartamentos, cuja entrada é lateral. Maurino, diz que quando chegou, entre o final do ano passado e o início deste, já estava tudo fechado. Ele mora em uma barraca improvisada junto ao muro lateral e cuida dos carros em troca de “um ou dois reais”. “Aqui eu tomo conta. Cuido os carros e moro aqui”, diz.

Ao lado de Valério, foi a segunda pessoa em situação de rua encontrada na região na tarde de segunda. Maurino diz que viu a remoção de alguns moradores. Diz que conhecia, mas não sabe para onde foram. Até agora, nenhum órgão público veio falar com ele. Por enquanto, diz que é tratado bem por todo mundo. De vez em quando, limpa o quintal de dois clientes, mas é um trabalho esporádico. “Eu to morando na rua porque o salário mínimo não dá para viver e pagar o aluguel”, diz.

Antiga pizzaria na esquina da Goethe com a Castro Alves está fechada | Foto: Guilherme Santos/Sul21

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