Giovana Fleck
O Centro Histórico de Porto Alegre conta com 32 bens tombados, seja pela Prefeitura, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) ou pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Desses, doze são propriedades particulares e o restante está distribuído entre o Governo do Estado do Rio Grande do Sul e a Prefeitura. Existem, ainda, outros imóveis que aguardam a regularização como patrimônio tombado.
O tombamento é uma das iniciativas possíveis de serem tomadas para a preservação dos bens culturais, na medida que impede legalmente a sua destruição e descaracterização. No entanto, existem poucos mecanismos que facilitem sua preservação física.
Porto Alegre é uma das 26 cidades brasileiras integrantes do Programa Monumenta. “Mas a única onde ele deu certo”, afirma o arquiteto Lucas Volpatto. O Monumenta é um Programa do Ministério da Cultura voltado à requalificação de centros históricos urbanos no território nacional. Seu modelo foi o primeiro a reunir a prática de restauração de edificações e espaços públicos, o financiamento de imóveis privados de valor histórico, e projetos no campo da educação patrimonial e da economia da cultura, aliando a memória social da comunidade ao desenvolvimento econômico.
Volpatto, que integra o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural (Comphac), explica que a prática em torno do Monumenta é viabilizada por meio de um fundo de investimentos pensado de forma auto-sustentável. “No caso de imóveis privados, através de financiamentos sem juros e com parcelas de até 10 anos, os proprietários de imóveis tombados podem requerer o recurso para realizar suas reformas.” Do total de recursos investidos, 70% são repassados a fundo perdido – ou seja, sem expectativa de devolução – pelo Ministério da Cultura. Os 30% restantes são aportados como contrapartida pelo município (com depósitos anuais no valor de até R$ 200 mil), Estado ou pela iniciativa privada.
Desde o início do projeto, 15 imóveis particulares foram restaurados, assim como prédios icônicos de Porto Alegre, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), o pórtico principal do Cais do Porto e a Biblioteca Pública.
Ainda assim, entre os projetos apresentados à Câmara de Vereadores no início do ano pelo prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) está o PL 10/2018, que propõe a extinção dos 26 fundos municipais. Entre eles, estão os únicos dois que incentivam o restauro do patrimônio, o Fundo Monumenta Porto Alegre (FUMPOA) e o Fundo Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (FUMPAHC). “É um retrocesso de gestão”, opina Volpatto. O PL deve ser votado nesta quarta-feira (28) na Câmara Municipal de Porto Alegre.
Da iniciativa ao fim das negociações
Eduardo Hahn, coordenador da memória cultural do município, explica que a criação do Projeto Monumenta se fundamentou na dificuldade existente para a restauração de bens de valor cultural sob propriedade privada. “É um instrumento promotor da preservação e divulgação do patrimônio cultural e deve sustentar suas ações no longo prazo, dando suporte financeiro a ações locais.”
Ele foi instituído em Porto Alegre pela Lei Municipal nº 8.936, em 2002. Segundo Hahn, o Ministério da Cultura teria investido cerca de R$ 5 milhões iniciais para que fosse possibilitada a abertura do primeiro edital. Quinze imóveis privados foram contemplados, além de projetos de restauração do patrimônio público.
Assim, por volta de 2012 e 2013, quando os financiamentos estavam terminando de serem pagos, o Fundo já contava com recursos suficientes para a abertura de um novo edital. No entanto, com o incêndio do Mercado Público, onde se localizava a sede administrativa do FUMPOA, o processo foi desacelerado. Somado à isso, a Caixa Econômica Federal, que detém os recursos do Fundo, sinalizou interesse de deixar o projeto. Na metade de 2013, o Programa Monumenta, enquanto iniciativa nacional, deixou de existir. Ainda assim, o fundo local permaneceu. “Foi o fundo com melhor resultado em todo o Brasil, com muitos resultados positivos. Em outras capitas, o poder público acabou usando a totalidade dos recursos do Ministério da Cultura, esvaziando o recurso. Aqui, houve um equilíbrio”, destaca Hahn.
Com a Caixa desejando se desvincular, o IPHAE passou a buscar outro banco que atuasse como agente financiador. “Por mais que seja muito dinheiro para quem trabalha com restauro cultural, para um banco é um rendimento pouco significativo”, afirma Hahn. Segundo ele, o recurso do FUMPOA hoje é de cerca de R$ 11 milhões.
Após alguns anos de procura, o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) manifestou interesse em manter os recursos. As reuniões de transição iniciaram em julho de 2017, com uma “perspectiva positiva”, segundo o diretor do IPHAE. “Tínhamos a ideia de relançar o edital para um futuro próximo, com a possibilidade de revitalizar imóveis como a Casa Azul“. No entanto, as negociações pararam assim que os projetos de Marchezan foram apresentados.
Fim dos fundos
A ideia da atual da Prefeitura é de, basicamente, reduzir as contas. Por isso, propõe que os 26 fundos – que contemplam as mais diversas áreas de destinação de recursos para políticas públicas específicas – sejam concentrados em um único caixa. A oposição alega que o projeto vai desassistir políticas públicas importantes e institucionalizar o calote da Prefeitura com os fundos municipais.
Em reuniões referentes ao PL, o argumento central apresentado pelo prefeito é de que o débito com os fundos impacta negativamente a avaliação sobre as finanças da Capital – impedindo, por exemplo, a obtenção de novos empréstimos. Além disso, por destinarem recursos para áreas específicas, os fundos engessariam a administração do dinheiro em caixa na Prefeitura.
Em memorando encaminhado à presidência do IPHAN, o Ministério da Cultura registrou que “convém esclarecer que os recursos que construíram o Fundo não são originários de Receita Federal e tampouco do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)”. Mesmo que a criação do FUMPOA tenha derivado de obrigatoriedade no Contrato de Empréstimo firmado com o BID, a origem dos recursos atuais é majoritariamente privada, fruto do pagamento dos financiamentos originais e outras formas de captação, como aluguéis, arrendamentos e outras receitas provenientes de imóveis que sejam destinadas ao FUMPOA. Assim, não haveria riscos de impedimento de novos empréstimos ou qualquer retenção de verba.
Para Hahn, a dificuldade na discussão sobre o fim dos fundo está na proposta de criação de um caixa único. “Não se sabe como será utilizado. O que se sabe é que Porto Alegre precisa de um aporte para o patrimônio.”
Por que investir no patrimônio cultural?
Há cerca de três meses, parte da rua Riachuelo está interditada. Duas rachaduras na fachada do imóvel conhecido como Casa Azul são as responsáveis. Com risco de desabamento, tapumes e sinalizações de trânsito tomaram conta do entorno para impedir o acesso de carros e pedestres. O imóvel é propriedade de diversos herdeiros, fruto de um inventário-cascata, e foi classificado pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc) como Imóvel Inventariado de Estruturação, ou seja, não pode ser destruído, mutilado ou demolido.
Nenhum dos descendestes dos proprietários originais sinalizou interesse em assumir a responsabilidade pelas obras do imóvel. Assim, a Prefeitura passou a pedir pela municipalização da Casa Azul. Por meio de liminar, afirma querer executar as obras emergenciais para assegurar a estabilidade estrutural da fachada. “Algo que poderia, facilmente, acontecer através do Monumenta”, aponta Volpatto. “Inclusive, já deveria ter acontecido”, completa.
De acordo com ele, há uma preocupação entre os proprietários de imóveis tombados, que, muitas vezes, sentem-se prejudicados por não terem condições financeiras manterem o patrimônio. Assim, a única alternativa de preservação se dá pela possibilidade de obter financiamento através de recursos do Monumenta. Para Volpatto, é fundamental que o FUMPOA seja mantido. “O projeto já foi responsável pelo restauro do 15 imóveis. Além disso, é fruto de um convênio com o Ministério da Cultura, com previsão de fim para 2022”. O arquiteto diz que o foco deveria estar voltado à melhor aplicação dos recursos, não em maneiras de limitá-lo. “É um privilégio poder contar com esse mecanismo. E isso deveria ser valorizado.”
Atualização – 13h29min
Em nota, a Prefeitura de Porto Alegre afirma que propôs, por mensagem retificativa enviada ao Legislativo, a criação de Fundo de Reforma e Desenvolvimento Municipal – em que permite que os valores revertidos a esse Fundo possam ser destinados à recuperação de bens culturais do município. Acrescenta ainda que: “O PLCE 10/2018 objetiva aperfeiçoar a gestão financeira de recursos públicos, vedando a criação dos Fundos que possuam como fonte o Tesouro municipal e extinguindo os que não têm mais movimentação financeira”.