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27 de julho de 2018
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14:04

Entenda a polêmica em torno da ópera-rock farroupilha proposta por Valter Nagelstein

Por
Sul 21
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Entenda a polêmica em torno da ópera-rock farroupilha proposta por Valter Nagelstein
Entenda a polêmica em torno da ópera-rock farroupilha proposta por Valter Nagelstein
Luiz Coronel e Válter Nagelstein em encontro na Presidência da Câmara Municipal de Porto Alegre. (Foto: Leonardo Contursi/CMPA)

Giovana Fleck 

Há cerca de duas semanas, Porto Alegre vem discutindo uma medida do presidente da Câmara de Vereadores, Valter Nagelstein (MDB), que vai destinar a um “antigo sonho”  a verba de uma rubrica praticamente inutilizada em anos anteriores dentro da Câmara Municipal. No início de julho, a Câmara – em parceria com a Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre – lançou um edital público para destinar R$ 350 mil da rubrica “atividades culturais” do orçamento anual da CMPA para o espetáculo Revolução Farroupilha, uma História de Sangue e Metal. A encenação será uma adaptação baseada na obra Revolução Farroupilha (2015), de Luiz Coronel e Danúbio Gonçalves. O gênero, no entanto, foi escolhido pelo presidente.

Raridade entre as encenações brasileiras, a ópera-rock pressupõe uma narrativa contada em diversas partes e musicada em torno de guitarras, baixos e baterias. De acordo com o edital, essa é a ideia: contar a história da guerra contra o governo imperial em um espetáculo que misture música, dança e teatro, além de instrumentos do rock clássico e da música tradicionalista gaúcha, para crianças.

A reportagem foi informada que o vereador se ausentou de Porto Alegre nos últimos dias, não estando acessível para responder questionamentos sobre o projeto. No entanto, em reportagem publicada pela GaúchaZH, Nagelstein explica que a ópera-rock é uma inciativa pessoal, algo que vê como um legado para a gestão que se encerrará em 2019. Segundo a reportagem, ao dizer que a origem do projeto veio de um conjunto de pessoas, o presidente da Câmara se corrige: “Quando falo nós, quero dizer eu, Valter”.

Pessoalização

Cristiane Marçal é produtora cultural, mestranda em Relações Sistêmicas da Arte pela UFRGS e co-idealizadora de eventos culturais como o Porto Alegre Noir e a série de cursos Sobre Viver de Cultura. “Ele está executando um desejo pessoal com dinheiro público”, ela diz, referindo-se à motivação de Nagelstein. Para Cristiane, se há egocentrismo no projeto da ópera-rock é algo para ser avaliado no julgamento subjetivo de cada um. “Mas esse é um caso de pessoalização”, completa.

Para Cristiane, isso provoca uma naturalização do dinheiro público como dinheiro privado – como se ele não tivesse dono, pertencendo a quem está na gestão. “Mas não é isso, dinheiro público pertence ao povo. E por que ninguém foi consultado antes da abertura do edital?”, questiona.

Leandro Maia, compositor e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), considera que projetos pessoais podem, sim, se concretizar a partir de financiamento público, considerando impactos sociais positivos. “Mas isso, geralmente, é proposto por políticos com uma trajetória de militância em determinada área, que não passa batido pela discussão de cultura na cidade”, reflete.

Além disso, Maia considera a situação “engraçada e suspeita”. “Me parece ter sido algo repentino, por não ter sido discutido com a comunidade. Além disso, claramente falta assessoria para montar o edital em si. Da maneira como ele está publicado, posso dizer que faltou conhecimento sobre como é feito”, diz o professor, se referindo à anexos do edital como o que define os equipamentos técnicos mínimos para realizar o espetáculo. “Nunca vi descreverem certos equipamentos sem especificar, por exemplo, a potência mínima ou outras especificidades. É incompleto”, afirma.

“Geralmente, quando se faz um edital, ou seja, se inaugura uma proposta, há um processo de discussão e apresentação. As vezes até um curso de capacitação, como é o caso de editais consagrados na área da cultura como o Itaú Cultural, o Pró-cultura RS, o Natura Musical… Faz sentido, o que se quer é que ele seja concorrido e divulgado”, diz Maia.

Cristiane cita a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, que delimita maneiras de promover expressões culturais na sociedade. No primeiro capítulo do relatório que descreve as definições da convenção sobre políticas culturais, é definido que deve-se almejar o que chamam de ‘governança cultural colaborativa’, em que são implementadas inciativas com base em múltiplas opiniões. “Foi um entendimento entre diversas nações de que aspectos da cultura não podem ter valor comercial, valorizando a diversidade cultural”, opina a produtora.

R$ 350 mil

O valor estabelecido no edital foi outro ponto polêmico. Serão destinados R$ 350 mil provenientes de uma rubrica que conta com R$ 370 mil em caixa. Segundo Guilherme Sisto, gestor do Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural (Fumproarte), o valor não é problema, nem deve ser alvo de críticas; é uma solução. “Esse é um recurso da Câmara que, se não fosse aplicado agora, não seria investido”, afirma.

Mesmo assim, a comunidade artística vem levantando outros questionamentos. Para Cristiane, os R$ 350 mil parecem plausíveis, considerando um espetáculo que realmente valorize os artistas. “Geralmente, os atores não são remunerados pelos ensaios. Se eles forem pagos como devem, o valor não é absurdo.”

A partir de um ponto de vista geral sobre a cultura em Porto Alegre, Leandro Maia afirma que um edital com este orçamento seria positivo para a classe artística. “Tem muita gente desempregada. Não duvido que terão companhias se organizando para concorrer. As pessoas precisam trabalhar.” De acordo com Sisto, três companhias já se apresentaram na sede do Fumproarte e teriam manifestado interesse.

Segundo dados da Secretaria Planejamento e Gestão, a rubrica Atividades Culturais tem recebido um aumento significativo de investimentos nos últimos oito anos. Em 2017, chegou a ter em caixa R$ 540 mil, sendo que, destes, R$ 10 mil foram destinados para materiais de divulgação, R$ 180 mil para a instalação de iluminação cênica no Teatro Glênio Peres e outros R$ 350 mil para custos gerais de gestão não especificados.

Porém, como informa a Diretoria-geral da Câmara, o orçamento é um só. Ou seja, mesmo que determinado valor chegue para as Atividades Culturais, não necessariamente será aplicado em cultura. “Se faltar papel higiênico, podemos investir em papel higiênico com o dinheiro da rubrica”, exemplifica representante da diretoria.

O Sul21 solicitou que os investimentos em cultura da Câmara fossem especificados, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. De acordo com a Secretaria de Planejamento e Gestão, os valores não estão disponíveis no Portal de Transparência.

O que se sabe até o momento é que, segundo o edital, a ópera-rock irá requerer uma estrutura específica para a montagem cênica – incluindo um palco de um metro de altura com 11 metros de largura por 11 metros de profundidade. Além de equipamentos de sonorização, monitores, microfones, rádios e iluminação.

Há, ainda, a declaração de direitos autorais assinada pelo autor da obra que irá inspirar o espetáculo, Luiz Coronel. No termo, ele fixa como taxa de direito de propriedade intelectual o valor máximo de 7% do total aportado pelo projeto. Ou seja, cerca de R$ 24.500.

Planejamento

Durante a reunião do Conselho Municipal da Cultura na última terça-feira (24), foi questionada a preferência pela obra de Coronel. Os conselheiros perguntaram sobre o motivo de a ópera não ser repensada a partir de textos de outros autores, como Simões Lopes Neto que, por já ter falecido há mais de 70 anos, a obra consta como patrimônio público, sem a necessidade de remuneração por direitos autorais. Ou, até mesmo, na ópera Farrapos, estreada em 1936 no Theatro São Pedro. Além disso, houve questionamentos sobre os motivos de não se realizar um número maior de espetáculos dentro do orçamento total.

Segundo Sisto, “as dúvidas foram esclarecidas” e levadas em consideração para a elaboração de um próximo edital. “No final, os conselheiros votaram por apoiar o projeto e selecionaram um dos cinco avaliadores que escolherão a companhia”, diz o gestor. O escolhido foi Luciano Fernandes, presidente do Conselho.

“Tudo bem homenagear o Luiz Coronel. Mas porque, então, não homenagear a sua obra? Assim, cria-se espaço para que as companhias que forem concorrer possam apresentar ideias originais, ou adaptações de algo que já foi pesquisado e está em estágios mais avançados”, sugere Maia. Para ele, o que poderia ser um direcionamento positivo, no sentido de resolver um problema criativo, cria mais obstáculos e possíveis atrasos.

Porém, há outro ponto que também gera dúvidas sobre o edital. Os prazos propostos parecem não coincidir com a grandiosidade planejada. As inscrições serão encerradas no dia 20 de agosto. A publicação definitiva dos resultados deverá ocorrer até o dia 18 de setembro e a execução das encenações começará no mês de novembro com três apresentações na orla do Guaíba e outras 10 em escolas da rede municipal.

Ou seja, serão cerca de dois meses para escrever, ensaiar, coreografar, arranjar e finalizar a apresentação. “Com relação ao tempo, considerando que será até novembro, dá pra fazer. Mas eu posso te entregar uma ópera semana que vem se tu quiser. Se tu quiser contratar pessoas para fazer uma trilha original, fazer uma montagem com crianção compartilhada… nem pensar. Tem como sair, mas vai ser algo improvisado. A menos que alguém tenha se preparado inicialmente. É pouco tempo para fazer uma coisa bem feita”, opina.

Segundo a produtora, a discussão em torno da ópera-rock evidencia a necessidade de diálogo com a comunidade. “Se isso for proposto novamente no ano que vem, temos que aproveitar a oportunidade para discutir como usar essa verba de forma mais democrática. Se o edital for cancelado hoje e o valor não puder ser usado até o final do ano, a culpa não será da classe artística, mas de quem o empenhou de maneira irresponsável.”

 

 


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