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24 de julho de 2018
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22:28

Depois de quatro meses, primeira ocupação da população de rua é despejada de terreno da Prefeitura

Por
Sul 21
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Remoção ocorreu no início da tarde desta terça-feira (24) | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Fernanda Canofre

Perto do meio-dia desta terça-feira (24) chegaram ao fim os quatro meses de vida em comunidade na Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, no Centro Histórico de Porto Alegre. A primeira ocupação do Movimento Nacional da População de Rua do Rio Grande do Sul (MNPR/RS), que teve início no final de março, em um terreno da Prefeitura, sem uso há quase uma década, próximo à Praça do Aeromóvel. O lugar servia de casa para cerca de 30 pessoas em situação de rua.

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“Todo mundo está muito triste ainda. Não é fácil, imagina, tu estar dentro da tua casa e chegar um comboio da Brigada, com uma máquina e tocar tudo para o alto. Sendo que todas as coisas que tinha lá eram doações, eram solidariedade das pessoas, uma rede de apoio que foi construída”, diz Deyvid Soares, um dos integrantes da ocupação.

As remoções já viraram rotina para a maioria dos moradores. Pessoas que vivem em situação de rua há anos, a maioria deles já havia vivido em ocupações no terreno destinado à Ospa, no Parque Harmonia, em outra área próxima ao ginásio Tesourinha e foram despejadas de todos eles. Alguns chegaram a ter experiência do aluguel social, porém, teriam sido despejados de imóveis por falta de pagamento da própria Prefeitura. Na maioria dos casos, os locatários dos imóveis ainda pediram para ficar com os móveis e pertences como garantia para as dívidas.

“Nunca conheci ninguém que chegasse para mim e dissesse: estou tri bem no aluguel social, tenho minha filha, minha família. Nunca. Todo aluguel social, que as pessoas são ouvidas, todo mundo fala mal”, conta Marcelo José Guedes, que vive há 17 anos em situação de rua. “Se [o prefeito] me perguntasse eu ia dizer: concede um terreno da Prefeitura para nós, que vocês não estão utilizando há vários anos, para nós reconstruirmos nossa família mais uma vez”.

Segundo Marcelo, enquanto alguns moradores sobreviviam limpando carros e trabalhando com reciclagem, outros vendiam o jornal Boca de Rua. Boa parte deles é também estudante da Escola Porto Alegre (EPA), a única da capital gaúcha destinada a pessoas em situação de rua, que fica a poucos metros do local.

Reintegração de posse estava prevista desde o início do mês | Foto: Joana Berwanger/Sul21

A reintegração de posse estava prevista desde o início do mês, quando a desembargadora responsável pelo caso rejeitou a exigência para que a Prefeitura Municipal de Porto Alegre oferecesse alternativas de destino para as pessoas removidas. Em uma reunião com a Defensoria Pública, Brigada Militar, Procuradoria Geral do Município, secretarias e integrantes do movimento, para definir como seria o trâmite do cumprimento da ordem judicial, a oferta do poder público foram vagas em abrigos e albergues municipais.

“A Fasc esteve acompanhando por duas vezes ao longo da última semana, conforme havia sido combinado numa reunião prévia, oferecendo alguns serviços. Alguns deles aceitaram e outros não”, explica Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira, procuradora do município e chefe da Procuradoria de Patrimônio e Domínio Público.

Os moradores, porém, reclamam que além das vagas serem insuficientes e temporárias, estão longe de atender suas necessidades.

“Hoje de manhã avisaram que iam lá e saímos numa boa, mas não temos para onde ir. Abrigos e albergues, o que acontece? Tem que sair 5h da manhã com chuva, com criança, é 15 dias em um e 15 no outro, tem que ficar para lá e para cá. Abrigo separa os casais e os filhos vão para onde? A gente não quer ir e perder tudo de novo”, afirma Alessandra Alves da Silva. Dos 30 anos de vida, ela vive há 17 na rua.

“A luta não é por vaga em abrigo e albergue, a luta é por moradia. Agora eles estão voltando para a rua, é uma grande vergonha”, diz Veridiana Farias Machado, educadora social e apoiadora do MNPR.

Questionada se o aluguel social estava entre as alternativas oferecidas pela Prefeitura, a procuradora Cristiane, respondeu: “De outra forma, pelo ‘Moradia Primeiro’, que é um novo programa que a Prefeitura está desenvolvendo”.

Moradia primeiro

Foto: Joana Berwanger/Sul21

Em maio, a Prefeitura de Porto Alegre anunciou um “Plano Municipal para Superação da Situação de Rua”. Entre suas medidas está o programa “Moradia Primeiro”, uma espécie de aluguel social voltada a pessoas em tratamento contra dependência química e em situação de rua.

Com verba do governo federal, por meio da Secretaria Nacional da Política sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, o programa prevê pagamento de bolsas de R$ 500 para 153 inscritos. O auxílio teria duração de seis meses, com possibilidade de ser prorrogado pelo mesmo período.

De acordo com a coordenadora do Plano, Sílvia Mendonça, o programa ainda não tem previsão de início. A verba inicial, para atender 70 inscritos que já foram cadastrados pela Prefeitura, já foi depositada, mas o poder público estaria com problemas para encontrar locatários dispostos a participar do programa. Até semana passada, apenas 36 candidatos haviam se inscrito. Destes, segundo ela, 13 atendiam os requisitos para participar do programa.

“A diferença do aluguel social é que as pessoas têm que aceitar visita quinzenal de acompanhamento e têm que seguir um acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Temos um formulário de avaliação, ela tem que estar cuidando do imóvel, etc”, explica Silvia.

Por ter critérios específicos, ela explica que não teria como o programa ser oferecido aos moradores da ocupação. Além disso, há uma fila de inscritos que teria de ser respeitada. Entre os 70 primeiros selecionados, porém, há uma casal que estava na ocupação da aldeia. Mesmo já com previsão de estarem no programa, a Prefeitura não tem um prazo de quando deve começar a encaminhar as famílias aos imóveis.

“Hoje, a gente está tendo um número muito pequeno de cadastros de imóveis, precisamos desse cadastro para ofertar. Foi criado um site pela Procempa, quem tem imóvel e deseja se cadastrar, pode acessá-lo”, explica.

Silvia acredita que a fama de má pagadora da Prefeitura pode ter influenciado na dificuldade por encontrar locatários. Ela explica, no entanto, que o programa tem verba garantida que só pode ser usada para ele.

Volta à rua

Integrantes da ocupação foram para a frente da Prefeitura após o despejo | Foto: Joana Berwanger/Sul21

A defensora pública do Estado Isabel Wexler, que representa os moradores da ocupação, diz que não tem encontrado beneficiários de aluguel social. Os dados repassados a ela pela Prefeitura apontam que o número de pagamentos caiu de 2 mil beneficiários para 600. Mesmo assim, a política pública sempre foi alvo de reclamações pela inadimplência do Executivo, que levava a despejos.

Nesta terça, Isabel diz que só foi informada da reintegração de posse extraoficialmente. A solicitação encaminhada por ela e pela Defensoria Pública da União era de que o município desse um pouco mais de tempo para cumprir a ordem, enquanto o programa Moradia Primeiro e outros começassem a funcionar.

“Para que serve a terra, os espaços? Eles servem para o ser humano, não vice-versa. O lugar estava abandonado há 11 anos, ocuparam porque é perto da EPA, da reciclagem. Ninguém tinha reclamações deles ali. É um terreno super complexo, nem poderia ter construções. A gente condicionou a saída à garantia de moradia, mas nem isso foi oferecido”, conta ela.

Apenas uma família – um casal com uma criança de 10 meses – conseguiu vaga em um abrigo para família. A única disponível, segundo a defensora. A família de Deyvid, que teve um filho há duas semanas, ficou de fora.

“Foi construída muita coisa, uma comunidade. Muita gente que está aqui já se conhecia, outros não. Além de uma comunidade, foi construída a dignidade das pessoas, muitas puderam se organizar, puderam correr atrás do seu trabalho, conquistar suas coisas de novo. Em quatro meses, teve muito resultado. A gente sabe que a população de rua é dispersa, mas conseguimos aproximar laços e acabamos saindo sem direito a nada”, lamenta ele.

Depois da remoção, parte dos integrantes da Aldeia seguiu em marcha para frente do Paço Municipal. Com barracas e cartazes, eles gritavam em protesto à falta de alternativas do poder público.

A procuradora do município que acompanhou a reintegração diz que ainda não há uma destinação para a área, que deve integrar o projeto de revitalização da orla do Guaíba. “A destinação é que ela seja mantida como área do município. O uso vai ser destinado com o tempo”, afirma.

Maioria das famílias da ocupação não tem para onde ir | Foto: Joana Berwanger/Sul21

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