Cidades|z_Areazero
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18 de julho de 2018
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22:59

À beira da orla do Guaíba renovada, mais uma desocupação no Centro de Porto Alegre

Por
Luís Gomes
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Ocupação de moradores em situação de rua, Aldeia Zumbi dos Palmares, está sob ameaça de reintegração de posse | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Desde o dia 29 de março, uma antiga área que já foi destinada a atividades esportivas reúne as famílias da ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares. São barracos improvisados com pedaços de madeira e lonas. Alguns se assemelham a uma casa de fato, outros são apenas barracas, muitas delas furadas e também cobertas por lonas para minimizar os efeitos de aguaceiros como os que caíram nos últimos dias. Pela Lei Complementar 738/2014, trata-se da uma área pertencente ao Corredor Parque do Gasômetro. Na prática, estava abandonada.

Deyvid Soares, Leandro Correa e Edson Campos, o Beiço, aproveitam o sol que voltou a aparecer em Porto Alegre quando a reportagem visitou o local ,na tarde desta quarta-feira (18). Ao fundo do terreno, uma fogueira aquecia o almoço de outro grupo de pessoas. Havia bicicletas e carrinhos de bebê encostados às paredes das casas improvisadas. O trio é parte das 12 famílias que ainda permanecem no local, uma ocupação voltada para pessoas em situação de rua, muitas delas ex-beneficiárias do aluguel social ou de outras programas sociais. Mas, na maior parte do tempo, pessoas que moram na rua há muito tempo, como Leandro, que está nessa vida há 22 anos.

No auge, contam que chegaram a ser 32 pessoas morando ali. Agora são menos, pois boa parte já deixou o local devido à uma ação de reintegração de posse que se avizinha. Muitas famílias são formadas por uma única pessoa. Mas há duas crianças e um bebê, o filho de Deyvid, nascido no 7 de julho. São pessoas que vivem da coleta e da venda de lixo, da venda do jornal Boca de Rua, de botons e camisetas do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), do qual fazem parte, e da venda de pães produzido pelo Clube de Pães Amada Massa, que tem justamente o objetivo de contribuir para a geração de renda para pessoas em vulnerabilidade.

Deyviv, Leandro e Beiço aguardavam por uma operação de reintegração de posse da BM, mesmo a polícia negando que isso irá ocorrer | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sentados ao sol, eles esperavam com a tranquilidade que se pode ter antes de uma ação de reintegração de posse. Um temor fruto de decisão tomada nesta terça-feria (17) pela desembargadora Walda Maria Pelo Pierro, que rejeitou o pedido de reconsideração de outra decisão anterior, em primeira instância, que determinou o cumprimento imediato da reintegração e ainda revogou como condição para o cumprimento dela a necessidade de reassentar os moradores da ocupação. “O fato é que, ainda que se entenda a precariedade econômica e social em que vivem os ocupantes do local, a menção ao direito à moradia, por si só, não justifica a alteração do entendimento exposto anteriormente”, disse a desembargadora em sua decisão.

No dia 9 de julho, as famílias se reuniram com representantes da Prefeitura, do judiciário, da Defensoria Pública — que as defende legalmente — e da Brigada Militar. Na ocasião, ficou combinado que deixariam o local espontaneamente num prazo de 10 dias, que vence amanhã. Nesta quarta, elas achavam que o fim do prazo significava que seriam retirados com força policial. Uma vigília chegou a ser chamada para que apoiadores fossem ao local e tentassem barrar, ou ao menos denunciar, uma operação do tipo.

Em conversa com a reportagem, o comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar (que atua na região do Centro de Porto Alegre), tenente-coronel Mohr garantiu que não havia nada marcado para esta quinta. “Não tem nada programado. Eles têm até amanhã para desocupar”, garantiu. É a mesma posição da Procuradoria-Geral do Município (PGM), autora do pedido de reintegração de posse.

Os moradores, no entanto, são céticos. A memória de outras reintegrações de posse na cidade ainda é viva. “Vamos ter que deixar, se não vão fazer que nem fizeram com o pessoal da Lanceiros, nos tirar como bichos”, diz Leandro. Alessandra Alves da Silva, que estava na reunião do dia, também tinha dúvidas sobre a possibilidade de haver ou não reintegração de posse nesta quinta, mas confirmava que, pela manhã, o restante das famílias deixaria o local.

18/07/2018 – PORTO ALEGRE, RS – Ocupação de moradores em situação de rua, Aldeia Zumbi dos Palmares, é ameacada de reintegração de posse. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Como parte do acordo, uma equipe da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) visitou a ocupação na semana passada após a reunião e ofereceu alternativas de abrigo na rede municipal. Apenas uma família aceitou. “Chegaram aqui e falaram que era só albergue e abrigo para nós, que não tinham nem projeto social para nós. Foi isso que falaram”, diz Alessandra.

A Prefeitura insiste em dizer que foi oferecida uma alternativa sim, a inclusão no Moradia Primeiro. Trata-se de um programa que faz parte do Plano Municipal de Superação da Situação de Rua da Prefeitura de Porto Alegre, cuja coordenação é da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Segundo Silvia Mendonça, coordenadora do Plano, o Moradia Primeiro consiste em 153 bolsas de R$ 500 mensais a serem destinadas para famílias em situação de rua, com histórico de abusos de álcool e drogas, alugarem imóveis por um período de seis meses, renováveis por mais seis após avaliação.

Até o momento, 70 famílias já foram cadastradas no programa, cuja verba é oriunda do Ministério da Justiça e começou a cair na conta da Prefeitura no último dia 6 de julho. Nenhuma delas já está de posse das chaves de casa ou apartamento e ainda não há um prazo definido para isso, pois, como Silvia explica, ainda se está em fase de cadastramento de mais pessoas para as 83 bolsas restantes e dos imóveis que as abrigarão. Até o momento, 36 foram cadastrados, mas apenas 12 ou 13 estão em situação regularizada para abrigar os primeiros beneficiados. Para esses casos, resta agora o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) agendar uma vistoria, a ser feita junta com as famílias, e, posteriormente, a formalização dos contratos.

Os moradores, contudo, também são céticos quanto ao programa, pois, para eles, parece muito com o que é o aluguel social, programa da Prefeitura que também é voltado para oferecer bolsas de R$ 500 a pessoas em situação de rua alugarem imóveis temporariamente. “É pura ilusão achar que aluguel funciona, porque não funciona. Eles pagam um mês, quando pagam, depois não pagam, os proprietários te expulsam que nem cachorro de dentro das casas porque a Prefeitura não depositou. Fica dois, três meses sem depositar e tu acaba voltando para a rua, para a mesma vida. É uma coisa que não funciona, que não dá certo”, diz Deyvid.

Ele conta que, quando se mudou para a ocupação, sua mulher já estava grávida, tendo passado a maior parte da gestação ali. Eles sabem que não é um local ideal, até mesmo porque o objetivo inicial era chamar a atenção para a precariedade das políticas públicas, mas a Aldeia Zumbi dos Palmares não deixou de ser um local em que eles tiveram a chance de se organizar e minimamente melhorar suas vidas. Além da questão financeira auxiliada pela venda de produtos, também contavam com uma rede apoiadores e, por constituírem uma comunidade, conseguiram de alguma forma ajudar uns aos outros.

Devyid reconhece que há entre eles pessoas que usavam drogas, mas que os momentos de conversa e escuta entre eles acabavam se convertendo em ações de redução de danos para minimizar esse uso. “A Prefeitura fala tanto que as pessoas fumam, bebem ou usam drogas, e aqui foi feita autonomamente uma redução de danos. Um trabalho que a Prefeitura não faz, que a Secretaria de Saúde não faz. Todo um trabalho que vai ser perdido agora porque não tem perspectiva nenhuma para ninguém, e a pessoa sem perspectiva acaba voltando a estaca zero de novo”, afirma.

A defensora pública do Estado Isabel Wexel diz que o pedido de reconsideração da reintegração de posse, negado pela desembargadora, foi feito justamente para que as famílias tivessem prazo para ver o programa da Prefeitura já implementado. “Em tese, é um projeto super bonito. Vem uma verba do governo federal, tem projeto de profissionalização das pessoas, só que ainda não foi colocado em prática. Não custava nada o poder judiciário esperar mais um mês até que ele se consolidasse”, diz.

Na prática, ela aponta que o projeto pode enfrentar o mesmo problema que o aluguel social, a dificuldade de se encontrar proprietários que aceitem alugar imóveis para o programa. “Qual o proprietário vai alugar com todos os problemas que deu com o aluguel social?”, questiona.

Caso deixem de fato a ocupação nesta quinta, os moradores dizem que, apesar de não terem outra saída que não seja ficar na rua, a ideia é de permanecerem juntos. Vizinhos à aldeia, ao lado dos parques que compõem a agora bela e renovada Orla do Guaíba e a Praça Brigadeiro Sampaio, também revitalizada recentemente, há outras barracas de pessoas que não têm um teto para chamar de seu. Próximo dali, junto ao Museu do Trabalho, há outra famílias.

“Agora, vai voltar para a mesma coisa, para a rua. Aqui tava melhor, o cara fazia redução de danos, vendia os pães. Tá todo mundo desanimado. A gente vê que está todo mundo tentando e não adianta, mas a intenção é não se separar”, diz Beiço.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

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