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1 de junho de 2018
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18:00

Falta de combustível faz moradores de Porto Alegre tirarem bicicletas do armário

Por
Luís Gomes
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O ciclista Thomas Moreira diz que foi perceptível o aumento de usuários de bicicletas nas ruas de Porto Alegre durante a crise de abastecimento de combustível | Foto: Guilherme Santos/Sul21
O ciclista Thomas Moreira diz que foi perceptível o aumento de usuários de bicicletas nas ruas de Porto Alegre durante a crise de abastecimento de combustível | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

A greve dos caminhoneiros, encerrada na prática apenas nesta quinta-feira (31), provocou um verdadeiro pânico nos brasileiros em razão de seus reflexos na falta de combustíveis. Após uma inicial corrida aos supermercados, o que se viu desde o último sábado (26) foi uma verdadeira corrida aos postos de combustíveis, com a população, em alguns casos, chegando a brigar para encher galões de gasolina. Por outro lado, o que também se viu foi um grande aumento no número de pessoas que, com os carros parados na garagem e os ônibus e outros modais de transporte funcionando abaixo da normalidade, optaram pela bicicleta como veículo para seus deslocamentos. Na quarta-feira (30), a reportagem do Sul21 visitou lojas e conversou com ciclistas, rotineiros ou eventuais, que indicaram terem percebido um grande aumento na procura e no movimento de bicicletas em Porto Alegre.

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Ana Dufech, funcionária da Bike Arte, localizada na Av. Aureliano de Figueiredo Pinto, destaca que o movimento na loja começou a subir muito na última sexta-feira (25), quando a greve já estava em seu quinto dia. Ela diz que, levando em conta a venda de acessórios, não apenas de bicicletas novas, e os reparos feitos, o volume de vendas e serviços duplicou. “Muita gente tirou das garagens as bicicletas que estavam paradas”. Segundo ela, o movimento continuou forte até terça (29), tendo começado a voltar ao normal nesta quarta (30). “Sexta, sábado e domingo estava todo mundo enlouquecido”, diz Ana.

Cláudio Deporte Vieira é proprietário da Bike Centro, uma loja com aspecto de garagem localizada na Rua João Alfredo. Ele destaca que os últimos dias representaram uma aumento de 20% a 30% nos serviços e vendas do negócio. Contudo, o que mais cresceu foi o movimento de pessoas que procuraram a loja para encher o pneu de suas bicicletas. “Isso creceu mais de 300%. Muita gente tirando do armário as bicicletas e colocando na estrada”, diz.

Cláudio é cético quanto a mudança de mentalidade da população | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Cláudio é cético quanto a mudança de mentalidade da população | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Na mesma linha, Pablo Weiss, um dos proprietários da loja Maiss, localizada na Av. Venâncio Aires, corrobora a percepção de que houve um grande aumento na quantidade de serviços prestados às pessoas que tinham bicicletas “abandonadas em casa”. Segundo ele, a procura aumentou cerca de 20% em relação a um dia sem greve. “O que aumentou foi o interesse das pessoas pela bicicleta. Muita gente que não conhece nada vindo testar, saber quanto custa”, diz.

A percepção do aumento pela procura por bicicletas durante a greve é confirmada pela maior utilização do serviço de compartilhamento BikePoa. Segundo dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação, o número de cadastros no serviço aumentou quase sete vezes na comparação entre a semana da greve (de 23 a 29 de maio) e a anterior (de 16 a 22), saltando de 1.082 para 7.463 cadastros. O total de viagens registradas no serviço bateu o recorde em maio, alcançando a marca de 56 mil usos. Nesta terça (29), foram registrados 3.828 viagens, mais que o dobro das 1.830 registradas na semana anterior. O mesmo aconteceu na segunda-feira (28), 3.612 ante os 1.762 do dia 21. É importante ressaltar, no entanto, que a operadora do sistema, a Tembici, reduziu o preço diário no dia 24 de R$ 10 para R$ 0,10 em razão da paralisação.

O advogado Thomas Moreira, que na quarta procurou uma das lojas para um pequeno reparo, cita como exemplo de aumento expressivo de bicicletas durante a paralisação o jogo entre Inter e Corinthians, realizado no Beira-Rio no domingo passado (27), quando o bicicletário do estádio ficou lotado com centenas de unidades. Morador do bairro Auxiliadora, onde também trabalha, ele diz optou por pedalar há anos, tendo o costume de “ir de terno” em seus deslocamentos na rotina de trabalho para o Foro Central.

Bicicletas lotam estacionamento do Beira-Rio na partida contra o Corinthians | Foto: Reprodução/Twitter/Internacional
Bicicletas lotam estacionamento do Beira-Rio na partida contra o Corinthians | Foto: Reprodução/Twitter/Internacional

Mudança de cultura

Em outra parada, encontramos o músico Gustavo Telles, que afirma há anos utilizar a bicicleta para diversos deslocamentos. No entanto, reconhece que, desde quando comprou um carro, em 2014, passou a andar menos de bicicleta. Ele espera que o fato de ter dependido apenas da bicicleta nos últimos dias possa ser um fator estimulante para que passe a priorizá-la cada vez mais, deixando carro apenas para deslocamentos em que a bike não é uma opção viável.

Ana destaca que, para além da procura pontual relacionada à greve, houve um crescimento progressivo do movimento nos últimos anos em razão do constante aumento no preço dos combustíveis e dos grandes congestionamentos registrados na cidade. “A gente tem vários clientes que, mesmo antes disso, só usam a bicicleta para se deslocar”, diz. Seu colega de trabalho Paulo do Prado afirma que é perceptível uma mudança de cultura. Ele acredita que, após a paralisação, essa mudança só tende a se acentuar. “O pessoal está falando que vai continuar a andar de bicicleta”, afirma.

Weiss também acredita que o número de adeptos da bicicleta vem aumento nos últimos anos. “Isso é nítido”. Ele concorda com Ana, da Bike Arte, que entre os fatores que têm estimulado as pessoas a deixarem os carros na garagem estão o preço dos combustíveis e a quantidade de veículos que congestionam as ruas diariamente.

Cláudio, da Bike Centro, é mais cético sobre uma possível mudança cultural. Ele acredita que ainda estamos longe de uma alteração significativa no cenário de dependência dos automóveis, apontando as filas que se formaram nos postos de combustíveis logo que a gasolina voltou a aparecer nas bombas como exemplo da extrema dependência dos carros. “Esses que tiraram do armário vão colocar de volta”, prevê.

Pablo Weiss (dir.) aponta que a falta de evolução no número de ciclovias como um fator que inibe a maior utilização de bicicletas | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Pablo Weiss (dir.) aponta que a falta de evolução no número de ciclovias como um fator que inibe a maior utilização de bicicletas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Weiss acredita que a crise de combustíveis pode ter sido “pedagógica” em demonstrar para as pessoas os resultados negativos da dependência excessiva dos automóveis e que há sim alternativas. Ele cita como um fator que deveria estimular as pessoas a andarem mais de bicicleta o ganho de tempo. “Em trajetos de até 10km, a bicicleta chega mais rápido 90% das vezes”, estima.

Por outro lado, avalia que ainda há alguns fatores que inibem que mais pessoas façam essa troca. Um deles é o temor de andar na pista de rolamento em locais que não há ciclovias. Outro é a falta de um espaço adequado para deixar o veículo nos locais de trabalho. Mas, o principal deles, em sua avaliação, é a falta de faixas exclusivas para circulação. “Tu teria um aumento exponencial se tivéssemos a malha cicloviária prevista. A realidade seria outra”, diz.

O Plano Diretor Cicloviário Integrado (PDCI) de Porto Alegre prevê uma malha de 495 km de ciclovias e ciclofaixas, mas, atualmente, são apenas cerca de 50 km de vias destinadas para estes veículos na cidade, número que está praticamente estagnado desde o início do governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB).

Weiss salienta que Porto Alegre foi uma das cidades pioneiras em termos de ter uma legislação que determina a implementação de ciclovias — o PDCI data de 2009 –, mas aponta que outras cidades já evoluíram mais nessa área do que a capital gaúcha. Um dos principais problemas que ele vê na malha cicloviária da cidade é a falta de ligação entre os percursos, “jogados ao léu”.


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