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2 de junho de 2018
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11:20

Com mais de 150 anos de história, Casa Azul da Riachuelo está interditada e corre risco de desaparecer

Por
Sul 21
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Prédio histórico da Riachuelo foi interditado por risco de desabamento. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Giovana Fleck

Há quase 150 anos quem passava pela rua Riachuelo avistava uma sucessão de sobrados em tons de bege e amarelo, erguidos ao longo de uma rua de chão batido com trilhos de bonde e calçadas de pedra. Entre as casas de estilo eclético, inspiradas no neoclássico junto a outros elementos, uma se destacava. Sede de uma fábrica de chapéus, colaborava para o apelido da via: Rua da Beleza.

Hoje, quem transita pela Riachuelo, no entanto, encontra poucos resquícios dessa época. Entre prédios residenciais com grades coloridas e lojas de rua, o casarão se esconde atrás de tapumes. Pintado de azul no século XX, o sobrado é encarado quase como uma armadilha para os pedestres. Sua gradual deterioração fez com que restasse apenas a fachada. Com três rachaduras profundas, parte do sobrado, popularmente chamado de Casa Azul, corre risco de desabar. Por isso, na sexta-feira (25), a circulação de veículos e pedestres nas imediações foi interrompida. Por determinação do prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB), pilares de sinalização e uma rede foram colocados no local para limitar o acesso.

Rua Riachuelo no século XIX, na esquina da Confeitaria Rocco. Foto: Arquivo/Péricles Lopes
Rua Riachuelo no século XIX, na esquina da Confeitaria Rocco. Foto: Arquivo/Péricles Lopes

“Essa casa é um símbolo de um dos primeiros processos de gentrificação da cidade, parte de uma história cíclica”, diz o historiador Péricles Lopes. Morador da Riachuelo desde a infância, Lopes escolheu estudar símbolos da arquitetura de Porto Alegre para falar das transformações da cidade e de seus impactos na vida em sociedade. “Eu sempre digo pros meus alunos que, para caminhar no Centro, tem que olhar para cima”.

Lopes afirma ter vivido na região tempo suficiente para vê-la se transformar e parte de sua história quase desaparecer. “Além da Casa Azul, tinha quatro ou cinco outros casarões na Riachuelo. Um deles foi demolido para dar lugar à expansão do Zaffari. Os outros, deram lugar a prédios, com o tempo. E assim foi indo. Naquela época, não havia uma preocupação em tombar esses bens.”

Agora, a Casa Azul depende de decisões e articulações judiciais para continuar existindo. “E isso, dificilmente, se alinha com o interesse privado”, opina Lopes. O prédio foi classificado pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) como Imóvel Inventariado de Estruturação – ou seja, não pode ser demolido. Ainda assim, ele não pertence ao Município. É parte de um ‘inventário-cascata’, com mais de 80 herdeiros – segundo Lopes. Entre 2010 e 2012, durante a gestão de José Fortunati, a Prefeitura arcou com custos emergenciais de manutenção da estrutura.

Após laudo de 2014 apontar riscos estruturais, a 3ª Vara da Fazenda Pública autorizou a demolição do bem em março de 2016. Segundo a PGM, na ocasião, a juíza responsável pelo caso condenou o Município ao pagamento de multa pela falta de preservação, absolvendo os proprietários. O Município recorreu, fazendo com que a decisão fosse reformulada em segunda instância. Como parte do acordo, a 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça incluiu os proprietários na condenação e determinou que a fachada do bem fosse restaurada. Também foi apontada a hipótese de expropriação do bem para fins de obtenção dos recursos necessários à restauração, medida agora analisada pela PGM.

A história da História

Uma das principais rachaduras que comprometem a estrutura. Foto: Guilherme Santos/Sul21

A data exata da construção da casa é indefinida. Estima-se que tenha sido erguida entre 1870 e 1880, aproveitando-se as fundações de um prédio que existia no mesmo endereço. “Essa era uma prática muito comum. A Casa Azul, na verdade, advém de um processo de gentrificação dessa região do Centro que começa a ocorrer exatamente no seu período de construção”, conta o historiador. Com o fim da Guerra dos Farrapos (1835-1845), uma série de transformações aconteceram. O portão da cidade, onde hoje é a Praça Conde de Porto Alegre, deixou de existir. Não fazia mais sentido ser ali a saída da cidade. Aquela região, então, começou a se expandir e deixar de ser residência dos mais pobres.

Lopes explica que as construções desse período ficaram conhecidas como parte da ‘Arquitetura Monumental’ de Porto Alegre. “Do fim do Segundo Reinado ao advento da Velha República, prédios de destaque como o Margs (antiga Inspetoria Fiscal da cidade), o Memorial do Rio Grande do Sul (antiga sede dos Correios e Telégrafos), o Clube dos Caçadores e o edifício Força e Luz se destacam.” São prédios que reproduzem uma mistura entre os simbolismos barrocos e os relevos modernistas. “Na Confeitaria Rocco, por exemplo, cada figura masculina representa uma das fartas produções do Rio Grande do Sul, como cereais.”

A Casa Azul é um sobrado inspirado no neoclássico francês. Além de servir a moradia no segundo andar, uma de suas primeiras funções foi a de sede de uma fábrica de chapéus. “Com o passar dos anos, a fábrica fechou e eles começaram a dividir o espaço em mais lojas, por isso tem mais entradas hoje”, conta Lopes. A alcunha de Rua da Beleza foi dada, justamente, por ser o polo chapeleiro da cidade. “Eram várias fábricas de chapéu naquela quadra. A última confecção [nas proximidades do casarão] chegou a ficar por ali até a década de 1990, quando foi demolida. Ela fabricava chapéus militares, para a BM e os colégios.”

“A história da casa é muita rica. E mostra como o Centro se transformou”, afirma o historiador Péricles Lopes. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Depois do fim da fábrica que funcionava na Casa Azul, outros tipos de comércio foram se estabelecendo ali – várias lojas, bares e restaurantes. Nos anos 60, um dos botecos era conhecido entre as crianças do Centro por vender chicletes, balas e figurinhas.

No século XIX, o pigmento azul não era comum. Após mais de um século em Porto Alegre, uma ferragem se estabeleceu em uma das separações construídas para mais comerciantes. Foram seus donos que trocaram a pintura da fachada, se diferenciado dos prédios beges e fazendo com que ela passasse a ser conhecida como Casa Azul. A ferragem teria permanecido no casarão por cerca de 30 anos.

Houve no local, também, um salão de beleza e uma barbearia. Ele ainda existe, mas do outro lado da rua. Mantendo as cadeiras originais, o negócio está em sua quinta ou sexta geração.

Os andares de cima também já abrigaram uma academia de musculação nos anos 1980. Além disso, um restaurante chinês também passou pelo casarão. “Mas ele foi interditado várias vezes ao longo dos anos. O grand finale do restaurante foi quando ele incendiou, e esse é um dos grandes motivos da desestabilização da casa. Parte dela ruiu e ficou sem manutenção”. Outro incêndio também teria acontecido na década de 80, em uma loja de bolsas. “Dizem que teria sido incendiada pelo dono, para conseguir o seguro. Mas isso ninguém sabe, é do folclore da rua.”

Depois da academia, o segundo andar voltou a ser moradia; mas por pouco tempo. “A história da casa é muita rica. E mostra como o Centro se transformou – daquela imponência sofisticada, com ar de requinte, para uma total e absoluta degradação. É assim que está nosso patrimônio hoje. A impressão que eu tenho é de que a gente caminha lomba abaixo. Porto Alegre perdeu muito das suas características originais, isso fruto de um descaso político”, afirma Lopes.

A rua foi interditada pela Prefeitura na sexta-feira (25). Foto: Guilherme Santos/Sul21


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